Nas últimas três semanas compreendi que o cerne da vida monástica é um arquétipo. Surgiu então a
questão: o que está no coração dos orientais e dos ocidentais que anseiam
e procuram "a unidade", ou o “satori” no Budismo ou na mística Cristã? Não pretendo responder essa
pergunta, mas sei que a minha estadia em três mosteiros budistas diferentes nas
últimas três semanas mostrou-me que a rotina dos mosteiros asiáticos, não é tão
diferente dos mosteiros do ocidente, afora talvez porque nossos irmãos e irmãs japoneses tenham mais disciplina.
No início do livro “Dharma de S. Bento”,
lê-se:
Com o quê os budistas se deparam na
Regra de S. Bento, se não estão habituados a ela, porque consideram as "Regras" surpreendentemente
familiar? Tem a ver com a ideia de “treliça”. O Dharma é comumente traduzido
como "ensino ou lei natural", mas a raiz do significado da palavra em pali ou em sânscrito, significa "apoio, ou aquilo que sustenta".
De certa forma, então, o Dharma é uma espécie de “treliça” que comporta o despertar. Tanto a Regra de S.Bento como o Dharma de Buda são, como diz Norman
Fisher, "orientações gerais para o caminho interno". Essa é provavelmente a razão pela
qual eu encontrei a vida nos mosteiros budistas surpreendentemente familiar.
Meu relato, portanto, consistirá em uma série de citações da Regra de S.Bento. Será a "lente" através da qual vou olhar para as minhas próprias experiências
aqui no Japão.
Prólogo da Regra de S.Bento: “Levantemo-nos
então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: "Já é hora de nos
levantarmos do sono". E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos,
ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: "Hoje,
se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações":
O argumento "estar desperto" é muito relevante para a tradição Zen
Budista.
O Prólogo da Regra: “Estabeleceremos
uma escola de serviço ao Senhor.” Fui informada que a maioria dos monges que vivem
nos mosteiros Zen Budistas estão lá apenas por um tempo limitado, ficou claro
para mim que são pessoas que está em treinamento. Estão sendo
formados para exercerem o sacerdócio. Em outras palavras, é diferente dos monges
ocidentais que moram num mosteiro por um longo tempo.
Capítulo 5 -
Sobre a Obediência: Pois são esses mesmos
que, deixando imediatamente as coisas que lhes dizem respeito e abandonando a
própria vontade, desocupando logo as mãos e deixando
inacabado o que faziam, seguem com seus atos, tendo os passos já dispostos para
a obediência, a voz de quem ordena.
Permitam-me um comentário
engraçado: na nossa segunda ou terceira noite em Sogen-ji nos juntamos à sangha
para o Zazen às 17:30, e estas sessões duram até às 21:00. Naquela noite eu
estava cansada, tive um dia cheio e estava muito difícil sentar-se por um longo
período de tempo. Eu, portanto, tomei a decisão de deixar o Zendo em um dos
intervalos e fui para a cama. Ótima escolha, pensei, enquanto me preparava para
dormir. Rapidamente caí num sono profundo quando um de nossos instrutores me
acordou, e me informou que eu não deveria deixar o Zendo no meio de um Zazen e
que o Roshi voltava em breve; eu deveria estar lá sentada no meu lugar até ele voltar. Houve um momento em que lutei internamente, mas depois
voltei ao Zendo. Isso para mim foi um exemplo clássico de obediência, pois
renunciei à minha própria vontade.
Capítulo 6 - Sobre o Espírito do Silêncio: Com efeito, falar e ensinar compete ao
mestre; ao discípulo convém calar e ouvir.
Em Tenne-ji, não só
experimentávamos o silêncio nas refeições ou quando andávamos de um lado para o
outro para o Zendo ou para o serviço matutino, também durante o samu da manhã e da tarde. Se estávamos puxando ervas daninhas com dez outras monjas ao
nosso lado ou fazendo um projeto de costura todas juntas em um quarto, não
houve conversa paralela, exceto o necessário. Em nossa última tarde fomos ao
castelo de Gifu em três carros. Houve alguma conversa, mas apenas para fins
informativos, como a hora que seria o almoço ou qual seria a hora do banho.
Capítulo 22 – Como devem dormir os monges: Se for possível, durmam todos num mesmo
lugar; se, porém, o número não o permitir, durmam aos grupos de dez ou vinte,
em companhia de monges mais velhos que sejam solícitos para com eles. Esteja acesa nesse recinto uma candeia sem
interrupção, até o amanhecer. Durmam vestidos e cingidos com cintos ou
cordas, mas de forma que não tenham, enquanto dormem, as facas a seu lado, a
fim de que não venham elas a ferir, durante o sono, quem está dormindo;
Vimos isso com nossos próprios
olhos em Tenne-ji. Porque nós três ficamos do lado de fora do Zendo cerca de
cinco minutos antes do sino tocar, nós observamos as residentes, tinham ido
dormir vestidas, se apressando para ir ao banheiro, lavar os rostos, e vestir o
resto do hábito antes de voltar ao Zendo.
Capítulo 48 - Sobre
o trabalho manual cotidiano: A ociosidade é inimiga da alma; por isso, em
certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas
com a leitura espiritual. Pela seguinte disposição, cremos poder
ordenar os tempos dessas duas ocupações.
Portanto, as irmãs devem estar ocupadas em certos momentos
com trabalhos manuais. São verdadeiramente monjas quando vivem do trabalho de suas mãos. Devo humildemente admitir que, para mim, fazer qualquer trabalho
manual durante três horas pela manhã e duas horas e meia à tarde foi um
desafio, principalmente físico, mas também um exercício de obediência. No
entanto, ao olhar para trás, percebo que aprendi muito sobre mim mesmo, e posso
certamente ver os benefícios de fazer algo coletivo em silêncio. A sangha em
Tenne-ji é extremamente admirável, fazem projetos em conjunto, constroem o
sentido de comunidade. Todos trabalham para a mesma causa, que é a vida em comum.
Infelizmente, no mosteiro em que vivi, desistimos de fazer trabalhos manuais juntas. Fazemos algum trabalho manual, mas raramente juntas como uma sangha.
Uma das razões, naturalmente, é que somos um grupo muito grande (280), mas
acredito que exista uma comunhão espiritual quando envolvidas em um
projeto juntas. Estou pensando em algumas de nossas irmãs que trabalham juntas
no jardim à noite.
Capítulo 53 - Recepção
dos hóspedes: Logo que um hóspede for anunciado, corra ao encontro do superior ou dos irmãos, com toda a solicitude caridosa; primeiro, rezem em comum e assim se associem
na paz. Não seja oferecido esse ósculo da paz sem
que, antes, tenha havido a oração, por causa das ilusões diabólicas. Nessa mesma saudação mostre-se toda a
humildade. Todos os hóspedes que chegam e que saem, faça reverências, com a cabeça inclinada ou com todo o corpo
prostrado por terra, o Cristo que é recebido na pessoa deles. Quando chegamos a Tenne-ji, Shika-san primeiro nos acolheu prostrando-se
ao chão, e então, quando toda a comunidade se reuniu, tomamos chá. Quando
visitamos Hozumi Roshi, ele acolheu-nos, e nos levou para o seu templo, demorou
alguns minutos para mostrar-nos o espaço e, em seguida, nos reunimos no Zendo
para o Zazen.
Capítulo 63 - Sobre
a Ordem na comunidade: Conservem os monges no mosteiro a sua ordem, conforme o
tempo que têm de vida monástica, o merecimento da vida e conforme o Abade
constituir.
Parte de nossa estadia em Ten'ne-ji andaríamos
e sentaríamos com disciplina. Quem era o mais velho entre nós? Era bastante evidente,
tanto em Sogen-ji como em Tenne-ji, quando os monges se sentavam à mesa, por
exemplo, é um momento muito importante. Havia uma hierarquia a seguir e respeitar, e as
pessoas precisavam ser lembradas disso de vez em quando.
Capítulo 63 (continuação):
Em qualquer lugar em que se encontrem os irmãos, peça ao mais moço bênção ao
mais velho. Passando um mais velho, levante-se o mais
moço e ceda-lhe o lugar, e não presuma o mais moço se assentar junto, a não ser
que convide o seu irmão mais velho, a fim de que se faça o que está escrito:
"Antecipando-se mutuamente em honra".
Eu vi dois exemplos disso em Eihei-ji. Uma noite no Zazen
testemunhei um monge novato ajudando um monge com idade avançada a se sentar. O
monge novato arrumou suas sandálias, e quando o Zazen terminou o jovem monge
voltou e ajudou o ancião a calçar suas sandálias. Foi um momento emocionante, como é
também quando testemunho esses momentos no mosteiro onde resido. Também
observei em Eihei-ji que, se passássemos por monges enquanto caminhávamos, eles
se curvavam e faziam "gassho". Embora não façamos isso no meu mosteiro em
Minnesota, notei que num mosteiro beneditino de homens no Canadá os monges se
curvam quando passavam pelos corredores. Em uma nota pessoal suspeitei que
muitas vezes fui ajudada durante estas semanas porque eu era a "com mais
idade” em relação aos membros mais novos da comunidade. Vou terminar estas observações e comentários com uma última
história. Na conclusão de um serviço matinal em Eihei-ji, jovens monges vieram
para a frente para fazer perguntas a Suzuki Roshi, que presidia. Achei as perguntas
simples, singelas, como “o que fazer quando se está sonolento durante o Zazen”.
Lembrei imediatamente de uma história dos ditos dos primeiros monges cristãos,
homens e mulheres, que viveram no deserto egípcio nos séculos IV e V. Com
perseverança, muitos deles se tornaram santos e santas. Com o tempo, foram
acompanhados por seus discípulos. Seus discípulos chamavam-nos de Abba e Amma e
pediam conselhos. Aqui está a história de um bom "conselho": Alguns monges foram até Abba Poemen e lhe disseram:
"Quando vemos os irmãos dormindo durante a Liturgia das Horas, como acordá-los para que estejam atentos?" Ele respondeu: "De minha parte, quando vejo um
irmão cochilar, coloco a cabeça dele sobre os joelhos e o deixo descansar.” Para concluir, estou convencida de que, nas próximas semanas
e meses, enquanto continuar refletindo sobre esta experiência extraordinária, as
pérolas se revelarão uma a uma. Em relação a isso aprendi muito sobre
a vida em mosteiros Zen Budistas, tenho me aprofundado em meu coração monástico.
Volto ao meu mosteiro de origem com renovado vigor, fidedigna à vida a qual
fui chamada e ao qual respondo.
O Zen visto através da ótica da Regra de S.Bento
[1] Dharma de S. Bento: budistas refletem sobre a Regra de S.Bento,
ed. Patrick Henry (Riverhead, 2001).
Irmã Hélène Mercier OSB, é monja do Mosteiro Beneditino de São
José, Minnesota, é secretária executiva do Conselho da Comissão Norte-Americana
de Diálogo Inter-Religioso. Irmã Hélène começou sua vida monástica no Convento
Beneditino de Montreal, fundado por Dom John Main.