Às 6 da
manhã, meu professor toca o sino. O som espiralado, torna-se vazio. No
centro de uma sala, estamos sentados de pernas cruzadas, de frente para uma
parede de tijolos. Lentamente a mente se aquieta, a respiração se
aprofunda; o barulho das crianças do lado de fora atravessa as paredes: duas
crianças brincam e falam alto indo em direção para o ponto de ônibus, sons de ambulância,
e helicóptero.
Neste
momento não há palavras, nem orações, nem milênios sucessivos onde Deus
opera meus atos. Lá está meu professor e lá estou eu, submergido na
turbulência em que me joguei há quatro décadas. Quando meu professor toca
o sino de novo, isso me traz de volta à superfície. À medida que o som do sino se amplia
mais uma vez, meus pulmões se abrem, minha mente se clareia e meus joelhos ainda doem. Com silêncio e quietude, outro dia começa.
Isto aconteceu
há uma década. Minha história não é a única. Criado com pouca aproximação ou conexão com o Judaísmo, mas em busca de um caminho espiritual,
encontrei o budismo. Uma imersão rápida, mas profunda à prática budista
levou-me, de volta a prática judaica embasada pelo estudo e
pela meditação. Algo parecido aconteceu com milhares de budistas no
Ocidente. Alguns judeus regressaram ao judaísmo, alguns abraçaram
plenamente o budismo, a maioria considera o judaísmo compatível com as
práticas contemplativas que são ensinadas nas salas de meditação. Como mencionado pela escritora Ellen Frankel, os judeus
deslocados buscam um caminho religioso que lhes seja aberto, mas não carregado
de dogmas antiquados - um caminho que não requer conversão, mas que envolve o
espírito. É difícil saber exatamente quantos judeus praticam em sanghas
americanas, mas é inegável que eles sejam peculiares, e são uma parcela significativa
da comunidade. Na verdade, Jay Michaelson, editor colaborador do The
Jewish Daily Forward, afirma que a prática ocidental do budismo é em si uma invenção de judeus
insatisfeitos. Um aiatolá imaginativo chega ao ponto de sugerir que os judeus, ansiosos por escapar à versão
universal, realizam o budismo como disfarce.
O budismo
me ajudou em um período de intenso recolhimento espiritual. Sentado em
meditação ou estudando com meu professor, comecei a compreender uma narrativa
interna que me retratava como uma vítima indefesa de vontades mais fortes, em
vez de um cocriador ativo de minhas situações. No zendo aprendi a ficar
quieto e aos poucos superar essa história. E fazer isso transformou minha conexão com Deus que experimento na sinagoga. Agora, a relação entre a
sinagoga e o zendo me auxilia em um período ainda mais complicado.
Há menos de
um mês, minha esposa desenvolveu um câncer. Quando recebemos a notícia, estávamos
do lado de fora de uma loja sorvetes com nossa filha mais velha e o namorado
dela. Nossa filha começou imediatamente a chorar – as mães de dois amigos
íntimos dela perderam batalhas contra o câncer nos últimos dois anos. As
lágrimas de nossa filha fizeram minha esposa começar a soluçar
imediatamente; o namorado e eu abraçamos nossos amores e lançamos nossos
olhares desamparados ao chão.
Muito tem
sido escrito sobre as escolhas disponíveis aos judeus
ocidentais enquanto eles personalizam uma vida espiritual. Mas o que
acontece com sua vida espiritual quando ela fica confinada à tarefa simples e
nada atraente de cuidar do outro? Quando o seu reservatório de compaixão seca e quando você sofre todos os dias ao ver seu parceiro sofrer - o
que acontece?
Nos primeiros tempos estudando o budismo, quando meu professor me pediu para
carregar um diário e manter o pensamento: “Não dois” na mente por uma
semana, eu não tinha certeza do que ele queria chegar, ou do que deveria ou não
deveria estar pensando. Num dia de outono, visitei meus pais em Chicago onde cresci. Estacionei o carro à sombra de uma árvore. Quando
voltei para o carro, vi que um lado da copa das folhas da árvore estava vermelho e dourado, enquanto o outro lado permanecia verde. Naquele momento,
tive um lampejo de percepção sobre a fantasia do dualismo. Foi no outono e
no não-outono; a árvore era uma e não-uma; e eu era um e não-um com a
árvore e com cada uma de suas folhas.
Esse ensinamento repercute cada vez que acompanho minha esposa às consultas médicas e às sessões de quimioterapia. Para ela, essas visitas são em partes bem tediosas e desgastantes. Ela recebe questionários com perguntas vagas e aparentemente intermináveis. Eu anoto tudo. Com tudo isso, estamos sozinhos e não sozinhos.
Todas as
manhãs, antes de meditar, faço uma pausa para refletir sobre a não dualidade entre minha esposa e eu, a dor e a esperança, as células saudáveis e as cancerígenas.
Mas a
oração também me é útil. Diz-se que oramos não para mudar a mente de Deus,
mas para mudar a nossa própria disposição em relação ao mundo e, na verdade, a
toda a criação. A oração judaica, que em sua forma tradicional é uma série
intrincada e coreografada de palavras e gestos, sempre sustentou minha
esposa. Rezando com ela em comunidade, diante da Arca que contém a Torá, é
possível sentir a não-dualidade de toda a comunidade – seus anseios por paz e
unidade.
Joseph B.
Soloveitchik, em The Lonely Man of Faith, comentou que há duas
histórias sobre a criação de Adão por Deus no livro de Gênesis. A primeira
(Gn 1.26-29) diz apenas que Deus fez Adão à sua imagem; a segunda (Gênesis
2:7), entretanto, diz que Adão se formou do pó da Terra e Deus soprou vida em
suas narinas. O primeiro Adão, diz Soloveitchik, é um criador: inquieto e
motivado, ansioso por aproveitar os recursos abundantes à sua disposição. Ele
não perguntou “Por quê?” mas como?" O segundo Adão, por outro
lado, é feito pela curiosidade e pela admiração. Ele é um receptor e
explorador da abundância em que se encontra. O primeiro Adão construiu e
trabalha através da comunidade; o segundo Adão reflete sobre sua solidão e
busca compreender.
Esta é a não dualidade do Judaísmo.
Todas as
manhãs durante as últimas semanas, que foram bem agitadas, levantei-me diante
de minha esposa e desci silenciosamente as escadas para meditar. Mesmo
quando afundo abaixo da superfície da minha mente barulhenta, fico alerta aos
movimentos dela. Assim que ouço os seus primeiros passos - mesmo no meio da prática
- subo as escadas para ver como ela está. Continuo rezando para que as
forças de cura derrotem o câncer dela. E continuo sentado em silêncio
todas as manhãs, respirando, pensando e não pensando, tomando consciência de
tudo o que surge e desaparece, dentro e fora.
David Gottlieb, é escritor freelancer e ativista pró moradia popular em Chicago. É coautor do livro "Cartas para um
Judeu Budista", na qual discute o zen budismo com o Rabino Akiva Tatz.