terça-feira, 26 de dezembro de 2023

JAMES ISHMAEL FORD - O QUE OS BUDISTAS FAZEM NO NATAL?




Celebramos sim! Sim, fazemos isso. Eu sou budista e conheço muitos outros budistas que também o fazem. A época do Natal para mim é uma época sagrada. Não porque vou ganhar uma bicicleta nova debaixo da árvore pronta para eu pedalar, mas porque esta época do ano me recordo de dois eventos que aconteceram na história mundial que me dá grande esperança e inspiração interior  - o nascimento de Jesus e a iluminação de Gautama Buda.


Jesus, Mestre das Seis Perfeições


Nos meus primeiros anos de prática budista me esforcei para incorporar as seis perfeições (paramitas), e passei a admirar muito Jesus. Para mim, ele é um dos maiores bodhisattvas da história. As seis perfeições nos ensinam a ser gentis, generosos, pacientes, alegres, silenciosos e a realizar tudo com sabedoria. Se o seu objetivo é tornar-se totalmente iluminado, então você deve realizar essas seis perfeições com uma motivação inabalável para se tornar a melhor versão possível de si mesmo, para que possa ajudar todos ao seu redor. E para conseguir isso, devemos ser altruístas. Você já tentou fazer isso? Você já tentou viver 24 horas por dia, 7 dias por semana, com mais interesse nos outros, colando seus interesses em segundo plano? Se sim, provavelmente concordamos: é muito difícil abandonar o eu ao qual estamos tão apegados. Bem, foi isso que Jesus realizou, e o Senhor Buda também. Ambos obtiveram a vitória sobre o egoísmo em todas as suas formas. Pensemos desta forma: em um mundo com tantas pessoas vivendo motivadas pelo ganho pessoal, Jesus e Buda estão entre os poucos que conseguiram, de uma forma ou de outra, viver de maneira completamente diferente. E ao fazer isso, curaram e ajudaram muitas pessoas. Os budistas celebram esta vitória sobre si mesmos muitas vezes todos os anos. Veremos que a gratidão, a alegria e a generosidade são fundamentais para manifestações de nossa fé.

Como obter equanimidade no Natal?

Por baixo das alegres celebrações desse tempo, podemos encontrar um terreno comum entre os ensinamentos de Jesus e de Buda – a essência central de ambos os seus ensinamentos permanece notavelmente semelhante – uma atenção inabalável no altruísmoNuma época de tamanha divisão global, o que poderia ser mais curativo do que nos apoiar e celebrarmos juntos? Embora tenhamos crenças diferentes, temos isto em comum: no mais profundo de nós temos a bondade e a compaixão, que tem muito poder sobre qualquer forma de divisão que o mundo possa nos lançar. Ao mergulharmos no espírito alegre destas festividades,  valorizemos esta essência que nos une! Todos nós queremos ser felizes. Todos nós queremos evitar o sofrimento. Vamos fazer algo a respeito. Vamos ampliar a bondade comum uns com os outros neste período e conhecer a verdadeira equanimidade neste planeta!


James Ishmael Ford (Myoun Roshi) é um escritor americano, reverendo zen-budista, e ministro emérito da Igreja Unitarista Universalista. Atualmente atua como ministro consultor da Primeira Igreja Unitária de Los Angeles. Recebeu a transmissão do Dharma da Rev. Jiyu Kennett Roshi em 1971. Mantém o blog Monkey Mind https://www.patheos.com/blogs/monkeymind. É autor de vários livros sobre o Zen. É primaz fundador e orientador espiritual da sangha Empty Moon. https://www.emptymoonzen.org/ 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

LAMA YESHE - NATAL, 1982



De alguma forma, ainda estamos vivos e conscientes o suficiente para lembrar quanto tempo se passou desde que Jesus nasceu. Foram mil e nove centos e oitenta e dois anos atrás, certo? E mesmo tendo a sorte de ter nascido em Shangri-la no Tibete, de ter entrado em contato com o mundo dos dakas e dakinis, e ter esta oportunidade de conhecer a história do santo guru Jesus, descobri que entender um pouco da vida de Jesus me ajudou a desenvolver meu próprio caminho, mas não é fácil entender os acontecimentos profundos da vida de Jesus. É muito difícil. Claro, os eventos superficiais de sua vida são bastante fáceis de entender, mas há não há espaço suficiente em nossa mente para compreender suas elevadas ações de bodisatva. Mesmo quando o Senhor Jesus e o Senhor Buda estavam aqui terra, era muito difícil para as pessoas comuns entenderem quem eles realmente eram. Naquela época, poucas pessoas os entendiam. Hoje eu estava lendo a Bíblia, em particular o Evangelho de João, e ele falava sobre os milagres que Jesus realizou e quão poucas pessoas entenderam a profundidade de sua mente liberada que lhe permitiu realizar tais milagres. De qualquer forma, sempre que estou em um retiro como este na época do Natal, gosto de falar sobre essas coisas. Mas vocês precisam entender que, quando faço isso, não estou tentando ser diplomático. Eu não preciso negociar meu relacionamento com vocês dessa maneira. Isso é do fundo do meu coração, o que sinceramente sinto e acredito que simplesmente recordar a vida de Jesus é uma oportunidade incrível. De certa forma, é claro, não importa de onde as pessoas vêm – Oriente ou Ocidente – ou de que cor são, aqueles que eliminam o seu pensamento de auto apreço e dá a vida pelos outros são seres humanos excepcionais. Por essa razão, estou feliz apenas por trazer Jesus e pensar e refletir sobre o que ele fez. Além disso, até certo ponto, sou responsável pela vida e bem estar psicológico dos meus alunos ocidentais, então se quisermos trazer o budismo para ocidente, precisamos fazer de uma forma saudável, em vez de introduzir como uma nova viagem exótica. Não precisamos de novas viagens – precisamos fazer algo construtivo, algo que valha a pena. Qualquer coisa que verdadeiramente valha a pena não diminui nenhuma outra luz; apenas a aprimora. E no que diz respeito à saúde psicológica, fazemos parte do meio ambiente e o meio ambiente faz parte de nós. Portanto, vocês que nasceram no ocidente não deveriam rejeitar o ambiente cristão em que nasceram. Deveríamos nos considerar pessoas de sorte termos nascido em uma sociedade cristã e de ter sabedoria para apreender o que isso significa para a nossa consciência. Especialmente nestes dias, quando há tecnologia revolucionária perigosa em todos os lugares e o mundo está sobrecarregado com combates e guerras, nós realmente precisamos lembrar ativamente de todos os que fizeram o bem no passado.
 
Então, João explicava como Deus nos enviou Jesus como testemunha da verdade, mas, infelizmente, algumas pessoas ignorantes não conseguiram reconhecer quem ele era ou entender o que ele estava ensinando e o mataram. Na minha opinião, o ponto de vista budista é que Jesus era um bodisatva, não apenas no sentido de ter realizado a bodichita e superado o egoísmo, mas no sentido de que, como realizador de milagres, ele era um santo, como Tilopa e Naropa ou, para citar um exemplo vivo, Sua Santidade Zong Rinpoche – alguém completamente livre de superstições que às vezes fazia instintivamente coisas estranhas que, o resto das pessoas não entendiam. Por exemplo, João diz que um dia Jesus estava perto de uma fonte quando a mulher veio encher seu jarro. Jesus lhe disse: “Como você pode saciar sua sede com água? Em primeiro lugar, é a água que deixa você com sede.” Jesus disse a ela que, já que é a água que a deixa com sede, como a água pode ser a solução para matar a sua sede? É algum tipo de pensamento reverso. Quem pode entender isso? Parece loucura, não é? O que ele quis dizer foi que somente a água espiritual pode realmente saciar a sede. Então vocês podem ver, o significado real está de alguma forma além das palavras. A mulher está tomando água; ele diz: “Por que você está fazendo isso? Isso não vai resolver o seu problema de saciar sua sede.” São diálogos malucos sobre a mente silenciosa. Hoje em dia provavelmente bateríamos em alguém que falasse assim conosco. Mas, felizmente, naquela época Jesus não apanhou por falar daquela maneira. João também disse que como Jesus nasceu de Deus, seus discípulos também eram derivados da energia de Deus. Isso é semelhante ao que dizem os ensinamentos budistas quando explicam que todos os shravakas e pratyekabudas nasceram do Buda Shakyamuni. A sensação aqui é que tais seguidores nascem do discurso de sabedoria e verdade do professor. Ao internalizar isso, eles descobrem a verdade por si mesmos e se tornam seres realizados. Filosoficamente, é claro, podemos dizer que o budismo não aceita que Deus seja a fonte de todos os seres humanos e de todas outras coisas. Mas de outro ponto de vista, podemos dizer que o budismo também não contradiz esta afirmação. Por exemplo, de onde vem o reino humano? O Buda disse que o reino humano é causado pelo carma positivo. Isso é verdade. Se os reinos superiores não provêm do bom carma, então de onde eles vêm? Então, do ponto de vista budista, todo bom carma vem do Buda... ou, você pode dizer, que vem de Deus. Portanto, o reino humano vem de Deus e de Buda. Por causa do discurso sagrado do Buda, os seres sencientes criam um bom carma. Quero que vocês entendam bem isso. Ainda assim, filosoficamente vocês podem argumentar este ponto de uma forma ou de outra. Depende de como vocês interpretam. Vocês podem interpretar a afirmação de forma negativa ou positiva. Na verdade, vocês podem fazer qualquer coisa com a filosofia. Agora, com relação a Deus, qual é a diferença entre Buda e Deus? Hoje direi que, de acordo com o budismo e o cristianismo, as qualidades do Buda e as qualidades de Deus são as mesmas. As pessoas sempre se preocupam com a criação. “Deus é o criador de tudo; Buda é o criador de tudo.” Isso significa que o Buda criou a negatividade? Bem, o Buda disse que, em última análise, não existe positivo e negativo. Os tibetanos abordam esta questão pegando o exemplo de um rio. Quando nós estamos na margem de um rio, chamamos a margem oposta de “o outro lado”. Quando estamos naquela margem chamamos esta de “o outro lado”. Existe este lado e aquele lado, aquele lado e este lado. É interdependente. Sem o outro lado, este e o outro lado não existiriam. Da mesma forma, se o positivo não existisse, o negativo também não poderia existir. Em outras palavras, o negativo vem do positivo, o positivo vem do negativo. Então talvez vocês argumentem: “Bem, se Deus é o criador, se Deus é a causa de tudo, como as coisas orgânicas como as plantas, assim como Deus podem ser permanentes?” As pessoas dizem que Deus é permanente – então como pode algo que é permanente produzir algo impermanente, como uma planta? A principal causa de um fenômeno impermanente também deve ser impermanente. Esse tipo de argumento vem dos budistas, então vou debater com eles: “Então, como você pode dizer que os shravakas e os pratyekabudas nasceram de Buda? Buda é permanente.” A resposta é que tais declarações não devem ser interpretadas literalmente. Em resposta a isso, direi: “Bem, Deus pode ser igual a Buda, no sentido de um ser pessoal. Deus pode ser uma pessoa da mesma forma que o Buda Shakyamuni foi.” Não é como se um Deus permanente estivesse sentado em algum lugar. Deus pode ser algo orgânico, um ser pessoal com quem você pode se relacionar pessoalmente. Eu lhe digo, os filósofos sempre tentam tornar tudo muito especial. "Deus. Buda. Deus é isso; Buda é aquilo.”
 
Eles colocaram Deus e Buda em algum tipo de pedestal intocável, de modo que as pessoas comuns não conseguissem se identificar com eles. Eles tornam impossível compreender a natureza de Deus, a natureza de Buda. Isso é estupido. Eles apenas criam mais obstáculos para as pessoas. Então os seres humanos, com suas mentes limitadas, tentam colocar chocolate e chantilly em Deus, e passar numa faca. Eles depositam seu próprio lixo em Deus. Está tudo errado; definitivamente errado. Eu realmente acredito que às vezes a filosofia pode se tornar um obstáculo para as pessoas realmente compreenderem a natureza de Deus e de Buda. Talvez eu seja um revolucionário, mas rejeito muitas das posições filosóficas sobre estas questões. No entanto, personificar Deus ou Buda não contradiz a sua natureza onipresente. Podemos falar das qualidades pessoais de Heruka, por exemplo, mas ao mesmo tempo ele é universal e onipresente. Precisamos entender isso. Um dos problemas que encontramos no ambiente ocidental é a opinião negativa que as pessoas geralmente têm dos seres humanos. Eles os consideram no mesmo nível dos peixes e das galinhas: são um incômodo; eles são muito complicados. Não temos respeito pela dignidade humana. As pessoas podem ter qualidades transcendentes enquanto humanas, mas não entendemos isso. Portanto, as pessoas que tentam explicar a Bíblia e Deus têm que separar os seres humanos de Deus: “Os humanos aqui embaixo são os piores. Eles são como fantasmas famintos, negativos e pecadores, enquanto Deus está lá em cima, perfeito e puro.” Isso está errado. Se você quiser tocar Deus com a mente humana, terá que estabelecer um relacionamento entre Deus e os seres humanos. Você não pode dizer que Deus é perfeito e os humanos são sujos. Sem chance. Além disso, a Bíblia usa o termo Deus pessoal ou algo parecido. Quando Sua Santidade o Dalai Lama visitou a Espanha no início deste ano, ficamos num mosteiro cristão. Havia cerca de trinta monges idosos ali; alguns eram muito velhos. Estávamos todos sentados juntos, nos divertindo fantasticamente, nos comunicando muito bem, meio que totalmente unidos, tendo uma longa conversa sobre religião, e um monge, ele devia ter uns cinquenta anos, descreveu Deus exatamente da mesma maneira que eu estava pensando. Eu estava em choque. Eu disse: “A maneira como você descreve Deus está explicado na Bíblia?” Ele disse que sim. De alguma forma, estávamos pensando em Deus da mesma maneira. Depois tivemos uma discussão sobre o vazio. Sua Santidade perguntou ao monge: “O que você acha que é o vazio?” O monge respondeu: “Desapego é vazio”. Para mim, essa foi uma resposta completamente satisfatória. Eu me prostro diante de qualquer um que responda dessa maneira. Não tenho dúvidas para com ninguém que pensa que o desapego é vazio. Isso é ótimo. Fiquei muito impressionado. Bem, qual é a diferença? Se você perguntar aos budistas inteligentes o que é o vazio, eles dirão a não-auto-existência, mas para mim, com a mente silenciosa, a resposta desapego é muito mais admirável. Estou falando sobre minha experiência. Se alguém me diz que desapego é vazio, isso toca meu coração. Filosoficamente, a resposta não-auto-existência é perfeita, mas é totalmente seca. Não tem nenhum sentimento. Do ponto de vista filosófico, dizer que o desapego é vazio pode até ser errado. Os filósofos tibetanos olharão de soslaio e dirão: “Uau, que tipo de resposta é essa?” Há aquela história de um geshe intelectual perguntando ao grande iogue Milarepa: “O que é o Vinaya?” Milarepa respondeu: “Eu não diferencio Vinaya de não-Vinaya. Tudo o que sei é que se minha mente estiver subjugada, isso é Vinaya.” Essa foi uma resposta incrível, não foi? Uma resposta inacreditável. Novamente, filosoficamente, a resposta de Milarepa estava errada, mas na verdade, foi realmente a resposta perfeita. Se você olhar para trás, para o verdadeiro Vinaya, essa foi absolutamente uma resposta do Vinaya. Mas se você está apenas brincando com as palavras, foi um desastre! Então o geshe fez outra pergunta, tentando controlar a situação: “O que é dicotomia?” Milarepa disse: “Bem, não sei”. Aqui não me lembro exatamente como foi. Minha memória não é tão boa. De qualquer forma, Milarepa disse: “Bem, não sei, meu querido amigo, mas acho que a mente oposta ao Dharma, isso é dicotomia”. Essa também foi uma boa resposta, não foi? Você provavelmente se lembra dessa história. O Vinaya não é apenas para monges e freiras. É para todos integrarem suas mentes com o Dharma; subjugá-lo com o Dharma. Então, quando um monge cristão diz que desapego é vazio, para mim essa é uma resposta que vai ao fundo. A mente do apego mantém uma concepção que é o oposto da sabedoria do vazio, porque o apego superestima a qualidade do seu objeto e projeta isso em sua realidade. O apego existe porque não entendemos a natureza do objeto. Se compreendermos o verdadeiro pensamento cristão, que o apego é um problema humano, mas podemos ir além dele, teremos uma resposta profunda.
 
Do meu ponto de vista, aqueles monges cristãos levavam uma vida mais ascética do que a maioria dos monges tibetanos. Essa é apenas minha opinião. Não estou menosprezando os tibetanos. Eu sou tibetano. Não há razão para eu me rebaixar. Eu não sou idiota. Ou talvez eu esteja sendo. O mosteiro onde viviam esses monges é muito isolado. Cada monge tinha sua própria cela, que possuía uma pequena abertura por onde a comida passava. Eles são totalmente independentes. Há um pequeno jardim nos fundos, que não pode ser visto de fora. Foi inacreditável. Fiquei muito impressionado e tenho grande respeito pelo cristianismo ocidental. Eu não estou brincando. Estou muito velho para brincar! E não estou dizendo “o cristianismo é ótimo” por algum propósito político. Também estou velho demais para políticas. Esses monges simplesmente tocaram meu coração. Eu nunca tinha visto isso antes; Eu nunca tinha visto um mosteiro ocidental com monges vivendo vidas tão puras e ascéticas com uma prática tão forte. Essa foi a primeira vez que vi isso por mim mesmo. Eu estava tão feliz. Bem, acho que meu tempo acabou. 

Agora tenho que terminar minha apresentação. Mas não tenho certeza de como terminar. No entanto, a minha conclusão é que eu gostaria que todos vocês tentassem unificar suas atitudes em relação ao budismo e ao cristianismo; para ver como o budismo pode de alguma forma ajudar a religião do seu próprio país. Ajude os cristãos a compreender melhor o budismo e ajude os budistas a compreender melhor o cristianismo da mente silenciosa, para que possamos respeitar uns aos outros, ter devoção uns pelos outros, tocar uns aos outros. Essa é a maneira mais saudável de ser. Como estou fora da sociedade ocidental, apenas observo isso objetivamente. Na minha perspectiva, os ocidentais foram grandemente influenciados por Jesus e pela religião cristã. Isso é muito valioso, tão valioso. Sua bondade, sua tranquilidade, sua bondade amorosa – tudo isso realmente vem da religião cristã. Você não recebe nada disso da política, não é? O que a política do seu país traz é derramamento de sangue. Então, do meu ponto de vista, eu lhe dou permissão para se tornar cristão amanhã. Eu me alegro. Vou te contar uma coisa: não sou apegado a essas coisas. Eu realmente acredito nisso. Se vocês viessem até mim amanhã e dissessem: “Lama, descobrimos que nossa religião tradicional tem tanto valor que decidi me ser cristão”, eu diria: “Muito obrigado”. Não machucaria meu ego. “Estaria feliz! Ótimo, vá à igreja. Tudo bem. Portanto, neste momento temos muita sorte de poder lembrar a vida profunda dos santos cristãos e o trabalho árduo que realizaram. Vale muito a pena regozijar-se com o que eles realizaram. Não apenas os santos do passado, mas também os do presente, aqueles que levam vidas ascéticas, dando as suas vidas para ajudar e trabalhar pelos outros em sua sociedade. Devemos orar pelo seu sucesso e crescimento espiritual, para que em breve percebam e se unifiquem com a Divindade. Historicamente, também podemos ver outras pessoas altruístas que vieram à Terra, como Gandhi-ji. Embora alguns não o apreciem, ele foi um grande homem que ajudou o povo indiano a se libertar do nariz inglês! E embora fosse um político muito hábil, a sua filosofia básica era ahimsa e compaixão, e com isso libertou o povo indiano da opressão britânica. Em troca, foi assassinado, mas também aceitou isso. Vocês podem ver quantos bilhões de pessoas existem na terra, e esse número continua aumentando, mas quantos estão preparados para se sacrificar um pelos outros? É muito raro alguém fazer isso, como quando em uma de suas vidas anteriores como príncipe, o Buda Shakyamuni sacrificou seu corpo à mãe tigresa faminta e seus filhotes. Jesus deu de si mesmo e Gandhi-ji também. Quem mais foi capaz de fazer o que eles fizeram? Oferecer publicamente a sua vida para salvar a de outra pessoa é muito raro, não é? Não estudei muito história, mas não creio que existam muitas histórias assim. Agora, não temos que dar a nossa vida ou o nosso corpo, mas podemos diminuir o nosso egoísmo, podemos desenvolver mais atenção com a felicidade dos outros do que com a nossa. Então motivem-se fortemente, assim: “Essas pessoas foram incríveis. Eles não tinham um pingo de egoísmo em seu corpo e se entregaram totalmente aos outros. Eu simplesmente não consigo me imaginar fazendo isso. Eles eram tão bons. A bodichita deles deve ter sido incrivelmente bem desenvolvida; eles devem ter tido uma enorme bondade amorosa e compaixão pelos outros; eles devem ter transcendido toda dor. “Então, tanto quanto eu puder, pelo resto da minha vida, dedicarei minha mente silenciosa, corpo, fala e mente e qualquer riqueza que tiver para beneficiar os outros. De agora em diante, pertenço aos outros e eles podem contar comigo como quiserem. Que eu e todas as mães e seres sencientes nunca nos separemos do professor bodisatva nesta e em todas as nossas vidas futuras.”
 
 
 

LAMA YESHE - DHARMA NATALINO



Quando voltarmos a nos ver na véspera de Natal para a celebração do nascimento do Santo Jesus, façamo-lo em paz, com boa vibração e mente exultante. Eu acho que seria maravilhoso. Participar da celebração com raiva seria muito triste. Venha em vez disso com uma bela motivação e muito amor. Não tenha discriminação, mas veja tudo e todos como uma flor dourada, até mesmo o seu pior inimigo. Então o Natal, que tantas vezes produz uma mente agitada, ficará tão lindo.

Quando você muda sua atitude mental, a visão externa também muda. Esta é uma verdadeira mudança de mentalidade. Não há dúvida sobre isso. Não sou especial, mas tenho experiência nisso e funciona. Vocês são tão inteligentes que podem entender como a mente tem essa capacidade de mudar a si mesma e ao seu ambiente. Não há razão para que esta mudança não possa ser para melhor.

Alguns de vocês podem pensar: “Oh, não tenho nada a ver com Jesus, nada a ver com a Bíblia”. Esta é uma atitude muito raivosa e emocional em relação ao cristianismo. Se você realmente entendesse, reconheceria que o que Jesus ensinou não foi nada além de: “Amor!” É tão simples e profundo. Se você tivesse amor verdadeiro dentro de você, tenho certeza de que se sentiria muito mais tranquilo.
O que você normalmente pensa sobre o amor? Seja honesto. Está sempre envolvido com discriminações, não é? Basta olhar ao redor desta sala e ver se alguém aqui é objeto do seu amor. Por que você discrimina tão nitidamente entre amigos e inimigos? Por que você vê diferenças tão grandes entre você e os outros? Nos ensinamentos budistas, esta atitude ilusória e discriminativa é chamada de dualismo. Jesus disse que tal atitude é o oposto do verdadeiro Amor. Portanto, há em alguém de nós o amor puro de que Jesus estava falando? Se não o fizermos, não devemos criticar os seus ensinamentos ou sentir que são irrelevantes para nós. Somos nós que entendemos mal, talvez conhecendo seus ensinamentos, mas nunca agindo de acordo com eles.

Há tantas frases lindas na Bíblia, mas não me lembro de ter lido que Jesus alguma vez tenha dito que sem você fazer absolutamente nada – sem se preparar de alguma forma – o Espírito Santo desceria sobre você, whoosh! Se você não agir da maneira que Ele disse que você deveria agir, não existe Espírito Santo em nenhum lugar para você.
O que li na Bíblia tem a mesma conotação dos ensinamentos budistas sobre equilíbrio, compaixão e transformação do apego ao ego em amor aos outros. Pode não ser imediatamente óbvio como treinar a sua mente para desenvolver estas atitudes, mas é certamente possível fazê-lo. Somente o nosso egoísmo e a nossa mente fechada nos impedem.

Com as verdadeiras realizações, a mente egóica não está mais preocupada com a sua própria salvação. Com o amor verdadeiro, a pessoa não se comporta mais de maneira dualística; sentindo-se muito apegado a algumas pessoas, distante de outras e totalmente indiferente às demais. É tão simples. Na personalidade comum, a mente está sempre dividida contra si mesma, sempre lutando e perturbando a sua própria paz. Os ensinamentos sobre o amor são muito práticos. Não coloque a religião em algum lugar no céu nem sinta-se preso aqui na terra. Se as ações do corpo, da fala e da mente estiverem de acordo com a bondade amorosa, você automaticamente se tornará uma pessoa verdadeiramente religiosa. Ser religioso não significa ouvir certos ensinamentos. Se você ouvir os ensinamentos e interpretá-los mal, você será, na verdade, algo oposto ao religioso. E é somente porque você não entende determinado ensinamento que você abusa da religião.

A falta de uma compreensão profunda leva ao partidarismo. O ego julga: “Sou budista, portanto o cristianismo está totalmente errado”. Isto é muito prejudicial ao verdadeiro sentimento religioso. Não se destrói religiões com bombas, mas com ódio. Mais importante ainda, você destrói a paz da sua própria mente. Não importa se você expressa seu ódio com palavras ou não. Os meros pensamentos de ódio destroem automaticamente a paz.

Da mesma forma, o amor verdadeiro não depende de expressão física. Você deveria perceber isso. O amor verdadeiro é um sentimento profundo dentro de você. Não se trata apenas de ter um sorriso no rosto e parecer feliz. Em vez disso, surge de uma compreensão sincera do sofrimento de todos os outros seres e irradia-se para eles indiscriminadamente. Não favorece uns poucos escolhidos e excluindo aos outros.
Além disso, se alguém bater em você e você reagir com raiva ou com grande alarme, gritando: "O que aconteceu comigo?" isso também não tem nada a ver com uma mente que conhece o significado do amor verdadeiro. É apenas a preocupação ignorante do ego com o seu próprio bem-estar. É muito mais sábio perceber: "Ser atingido não me prejudica realmente. Minha ilusão de ódio é um inimigo que me prejudica muito mais do que isso." Refletir assim permite que o amor verdadeiro cresça.

 Este ensinamento está no livro "Mente silenciosa, Mente sagrada: Reflexões de um Lama tibetano sobre o Natal", uma coleção de palestras proferidas por Lama Yeshe, ao final de um dos retiros no Monastério Kopan. Estudantes ocidentais reuniram-se na véspera de Natal, para ouvir ensinamentos sobre a prática budista e o nascimento de Jesus.

sábado, 18 de novembro de 2023

HOZAN ALAN SENAUKE - RUMO AO DHARMA SOCIAL - CUIDANDO DE NOSSA CASA COMUM

 



O Buda se iluminou debaixo de uma árvore. Sentado sob a árvore Bodhi nas margens do rio Neranjana, ele foi afrontado pelo rei demônio Mara, que fez o possível para plantar semear confusão. Mara perguntou com que direito Sidarta Gautama reivindicou a sede pela iluminação. O Buda permaneceu firme em sua meditação e simplesmente se inclinou para tocar a Terra. A Terra respondeu em voz alta: “Eu sou sua testemunha”. Mara fugiu e o Buda continuou a praticar. A Terra foi parceira no trabalho do Buda, assim como deve ser nossa parceira e nosso apoio.

 

No final de Junho, o Papa Francisco lançou a sua encíclica Laudato Si/Louvado Seja, um apelo apaixonado pela consciência ambiental e pela transformação social e espiritual. Este eloquente documento – intitulado Sobre o cuidado da nossa casa comum – é dirigido a “todas as pessoas que vivem neste planeta”, convidando-nos a todos a participar no diálogo e na ação para proteger o nosso futuro, o dos nossos filhos e o de todos os seres.

 

Logo no primeiro parágrafo da Laudato Si, o Papa Francisco faz referência à obra lírica de seu homônimo, São Francisco de Assis. No “Cântico do Sol” São Francisco nos lembra que:…a nossa casa comum é como uma irmã com quem partilhamos a vida e uma linda mãe que abre os braços para nos abraçar. “Louvado sejas, meu Senhor, através da nossa Irmã, a Mãe Terra, que nos sustenta e governa, e que produz vários frutos com flores e ervas coloridas.”

 

 

Para muitos de nós, o Papa Francisco é uma rajada de ar fresco: uma figura religiosa mundial que não tem medo de falar da situação difícil dos pobres e dos perigos de uma “cultura do descartável”. Ele pode falar a verdade sem rodeios: “A terra, nosso lar, está começando a parecer cada vez mais com uma imensa pilha de sujeira”, e defender de todo o coração uma “ecologia integral” que veja…

…uma relação entre a natureza e a sociedade que nela vive. A natureza não pode ser considerada como algo separado de nós mesmos ou como um mero ambiente em que vivemos. Fazemos parte da natureza, incluídos nela e, portanto, em constante interação com ela.

 

Tais entendimentos e preocupações estão certamente presentes nas tradições budistas que remontam ao despertar do Buda. Nas últimas décadas temos visto o desenvolvimento do Budismo socialmente engajado. Mas parece-me que ainda nos falta um equivalente budista rigoroso ao “Evangelho Social”. Precisamos de um “Dharma Social” para cuidar da nossa casa comum. Este Dharma Social deve abranger as nossas diferentes culturas e tradições budistas. Isso significa cuidar dos nossos corpos, das nossas comunidades e do nosso planeta. Significa compreender as ligações entre as alterações climáticas, a pobreza, o racismo e o militarismo. Todos estes são fios da vestimenta comum de dominação e opressão. Ignorá-los é convidar à destruição de tudo o que prezamos.

 

Surgindo no início do século XX a partir da miséria da revolução industrial, o Evangelho Social foi uma nova abordagem à mensagem de Cristo e aos ensinamentos éticos cristãos, que foram interpretados à luz da justiça social, incluindo pobreza, racismo, trabalho infantil, guerra, crime e muito mais. Embora os papas anteriores tenham abordado estas questões de várias maneiras, nenhum foi tão franco como o Papa Francisco, tão claro sobre as desigualdades do nosso mundo e os perigos do nosso modo de vida. Repetidas vezes o Papa Francisco martela o seu Evangelho Social nas páginas da Laudato Si' :


Os problemas sociais devem ser abordados por redes comunitárias e não simplesmente pela soma de boas ações individuais. Esta tarefa colocará exigências tão tremendas ao homem que ele nunca poderia alcançá-la por iniciativa individual ou mesmo pelo esforço conjunto de homens criados de forma individualista. A conversão ecológica necessária para provocar uma mudança duradoura é também uma conversão comunitária.

 

Como Budistas podemos abraçar a Ecologia Integral da mensagem do Papa e colocá-la no centro de um Dharma Social. A ecologia integral não é cristã ou budista, mas verdadeiramente humana. Os principais ensinamentos e preceitos budistas tratam do nosso relacionamento com todos os seres, não tratando ninguém ou nada como objeto de nossa manipulação. Na tradição Zen, o Mestre Dogen escreve: “Entenda que o antigo Buda ensina que o seu nascimento não é separado das montanhas, dos rios e da terra”. Isto significa que somos responsáveis ​​pelo mundo em que vivemos. Em outro lugar, Mestre Dogen oferece estas palavras encorajadoras:


…Dê flores desabrochando nas montanhas distantes ao Tathagata. Oferecer tesouros acumulados em nossas vidas passadas aos seres vivos. Oferecemo-nos a nós mesmos e oferecemos outros aos outros.

 

Um presente nos foi dado para sustentar, cuidar e compartilhar com todos. A terra inteira é meu verdadeiro corpo. Todos estamos no mesmo terreno e este terreno é instável. O planeta está em risco. Aqueles que são mais pobres, aqueles com menos acesso aos recursos, são os que mais sofrem. Mas, na verdade, estamos todos ameaçados. À luz da realidade interdependente, no círculo de dar e receber, todos sofremos. Então pergunto: podemos abandonar as coisas prejudiciais: o medo, o privilégio e a vã busca por conforto às custas da vida dos outros? No espírito da Visão Correta podemos criar um Dharma Social? Nas palavras de uma fábula escrita por meu antigo professor Robert Aitken Roshi:


A Coruja disse: “O que são Visões Corretas?”

Urso Marrom disse: “Estamos nisso juntos e não temos muito tempo”.

 Então… o que devemos fazer? Não temos muito tempo.

 

Hozan Alan Senauke, é fundador do Clear View Project e vice-abade do Berkeley Zen Center, onde reside há trinta anos. Em junho de 2015, ele participou de um diálogo budista-católico patrocinado pelo Vaticano em Roma sobre o tema “Sofrimento, Libertação e Fraternidade”.

 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

BRENDA ESHIN SHOSHANNA - DHARMA JUDAÍCO (O GUIA PRÁTICO DO ZEN JUDAÍCO)


INTRODUÇÃO

Como uma estudante zen de longa data e judia praticante criada em Borough Park, Brooklyn, que não conseguiu abandonar nenhuma das duas práticas, tenho lutado durante muitos anos com o que parecem ser ensinamentos completamente diferentes do Zen e do Judaísmo. Dominado por essas duas práticas antigas e poderosas, finalmente percebi que, apesar de toda a lógica, cada uma é essencial para a outra. A prática Zen aprofunda a experiência judaica e ajuda a compreender o que é a autêntica prática espiritual judaica; A prática judaica proporciona o calor e a humanidade que podem se perder no caminho do Zen. Felizmente, não estou sozinha neste enigma. Há hoje cerca de 1 milhão de judeus budistas nos Estados Unidos (“JuBus”, como são frequentemente chamados) – um número que cresce rapidamente. Desde a década de 1950, os judeus de todo o mundo lentamente se voltaram para a prática budista - tanto que hoje, 3 milhões de praticantes budistas nos Estados Unidos, quase um terço deles são judeus. Qual é a conexão entre Judaísmo e o Zen? Como eles iluminam um ao outro? Hoje, uma grande fome espiritual está a emergir à medida que muitos procuram conforto, apoio e significado num mundo que está fora do controle. Existem infinitos caminhos a seguir, mas a maioria dos judeus modernos – e também os não judeus – têm pouco conhecimento do que realmente são a prática judaica autêntica e a prática Zen autêntica. Quando olhamos hoje para o Judaísmo, vemos uma massa de costumes, tradições e rituais conflitantes. Muitos Judeus estão abandonando o Judaísmo, sentindo-se rejeitados por ele, ou pensando que a prática é demasiado complexa ou desligada das realidades do mundo de hoje. Muitos tornaram-se porta-vozes e professores das práticas espirituais do oriente, incluindo o Zen. Contudo, a prática Zen, mal compreendida, pode levar a dificuldades inesperadas. Os estudantes Zen precisam do calor, de base, do equilíbrio e da perspectiva de vida que o Judaísmo proporciona. E é evidente que o Zen oferece aos judeus algo que também é profundamente necessário. O que é isso? Os judeus precisam abandonar a sua própria religião para aderir ao Zen? Ou será que o Zen é capaz de dar vida às suas próprias tradições de maneiras novas e importantes? Num certo sentido, o Judaísmo e o Zen representam dois extremos opostos de um mesmo continuum: o Zen baseia-se na liberdade radical, na individualidade, no estar no presente e no desapego. O Judaísmo está enraizado nas relações familiares, no amor, na oração a um Poder Superior e na determinação para persistir e lembrar. Um coração judeu é ardente, generoso, humano, dedicado à família e aos amigos e cheio de desejo pelo bem-estar de todos. Um olhar Zen é arejado, objetivo, espontâneo, enraizado no momento presente. Ela não é sobrecarregada por ideias, crenças, tradições, esperanças ou expectativas. Essas práticas são como as duas asas de um pássaro: ambas são necessárias para que ele voe. Este livro mostrará como a prática Zen e a prática judaica ilumina, desafia e enriquece uma à outra. Você verá como cada tradição aborda questões fundamentais que orientam a vida e fornecem chaves para encontrar respostas para as lutas pessoais que enfrentamos hoje. Cada capítulo trata de diferentes questões da vida e mostra como as práticas judaicas e o zen podem ajudar a lidar com elas. Diretrizes e exercícios específicos estão incluídos. A necessidade de ajustar o zazen com a prática judaica e os ensinamentos da Torá sempre foi muito importante para mim, e estou ciente de muitos indivíduos, tanto judeus como cristãos, que desejam praticar a sua religião original de uma forma que pareça curativa e congruente para eles. A prática do zazen cria uma atmosfera de amor, aceitação, respeito, clareza e bondade – e não apenas ilumina os ensinamentos originais, mas proporciona uma experiência mais profunda deles. E, inversamente, a religião de origem traz uma dimensão benéfica à prática do zazen, fundamentando-a na realidade de quem você é e de onde você veio.
É muito fácil perder de vista o verdadeiro propósito de qualquer prática. Mesmo com as melhores intenções, a obediência cega às formas, a obsessão e a pressão do grupo para se conformar podem e de fato levam muitos ao erro. A raiva, as atitudes de julgamento e manipulações podem facilmente substituir a bondade, a generosidade e a sabedoria que estão no cerne de toda verdadeira prática. Praticar o Zen e o Judaísmo juntos é uma proteção contra isso. Cria um equilíbrio que elimina as ervas daninhas e permite que a sua compreensão se aguce e a sua vida floresça. Para poder experimentar isso, é importante saber em que consiste cada prática e então experimentá-la você mesmo. Na minha casa temos um zendo que se dedica a combinar as práticas judaicas e a do zen de uma forma autêntica. Participam tanto judeus como não judeus; foi muito significativo para todos. Praticamos zazen normalmente em dias comuns, mas quando nos reunimos nas tardes de sábado incluímos o estudo da Torá, orações e bênçãos também. Em preparação para cada feriado judaico, realizamos um retiro de três dias que dura oito horas diárias. Dedicamos o retiro para aprofundar a nossa ligação a Deus e a esse feriado específico. Durante o retiro fazemos zazen e, quando chega a hora de cantar, entoamos orações hebraicas (geralmente Avenu Malkeinu). Todos os dias oferecemos bênçãos, orações e dedicatórias, em voz alta ou silenciosamente, dependendo do desejo particular de cada um. Quando chega a hora de ouvir uma palestra, estudamos os ensinamentos da Torá e dos sábios relativos a esse feriado específico. Também podemos combinar os ensinamentos Zen sobre um ponto específico. Durante nosso retiro de Rosh Hashaná, sentados em zazen e ouvimos o toque do shofar. Em Chanucá, durante o zazen, um membro se levanta, recita as bênçãos em hebraico e acende as velas. À medida que praticamos zazen, as velas piscam sobre todos nós. Para Shavuout, junto com o zazen, passamos horas extras no estudo da Torá. Para cada feriado, incluímos observâncias específicas relacionadas a esse feriado e também desfrutamos de deliciosas comidas festivas. Esta combinação de zazen e prática judaica tem efeitos maravilhosos. À medida que nos sentamos em zazen, a concentração aumenta, os pensamentos dispersos diminuem, a atitude defensiva se dissolve, o coração se abre. Isso eleva e aprimora profundamente o estudo, as orações e as bênçãos. Após o estudo ou as orações, voltamos ao zazen e digerimos profundamente tudo o que aconteceu. Este é um processo e uma exploração contínuos onde todos podem reivindicar a totalidade de quem são, honrar de onde vieram e voltar-se para seus ensinamentos originais mais profundamente, vivê-los e vê-los agora, de uma forma nova, vital e autêntica. Em última análise, você não pode saborear os verdadeiros frutos de uma prática até e a menos que você assuma um pouco dela e aplique-a em sua vida. Ao embarcar em uma prática que inclui tanto a prática Zen quanto a judaica, você verá as maneiras pelas quais elas se fertilizam mutuamente, como a prática Zen aprofunda e esclarece sua compreensão dos ensinamentos judaicos e como ela melhora a experiência de oração. Você também verá como o calor, a sabedoria e a profunda sensibilidade do estudo da Torá podem colocar sua prática Zen em um contexto maior e permitir que ela seja integrada mais facilmente na vida cotidiana. O livro é destinado a judeus, não judeus, estudantes do Zen e a todos os envolvidos em outras práticas que desejam expandir sua sabedoria ou enriquecer suas vidas. Ele falará a todos os indivíduos que buscam compreender o significado e desejam viver uma vida alicerçada na fé autêntica. Hoje existem diferentes pontos de vista dentro das denominações judaicas sobre em que realmente consiste a prática. Este livro tenta fornecer uma introdução às práticas judaicas essenciais baseadas na Torá e nas leis judaicas (halachá), bem como à prática e aos princípios do Zen. Reconheço que os leitores deste livro vêm de diversas origens e perspectivas. Certas práticas parecerão naturais e convidativas, enquanto outras podem parecer dissonantes ou impossíveis de serem adotadas. Está ótimo. Todas as práticas não são para todas as pessoas. Na própria Torá cada pessoa é encorajada a encontrar as porções e práticas específicas que são destinadas a ela. Um antigo rabino, Rabino Baer de Radoshitz, fez disso um ponto fundamental dos seus ensinamentos. Ele disse que é impossível dizer aos homens que caminho devem seguir. Em vez disso, deveriam descobrir que isso lhes fala, que podem integrar e que é edificante. Para um a maneira de servir a Deus é através dos ensinamentos, para outro através da oração, para outro através do jejum, e para outro ainda através da alimentação. Todos devem observar cuidadosamente o caminho que seu coração os atrai e então escolher esse caminho com todas as suas forças. Se você cair na culpa, na pressão ou na condenação de si mesmo ou de qualquer outra pessoa, você perderá o propósito de ambas as práticas, que é abençoar, despertar e curar o mundo inteiro.

                       

na fotografia: Robert Kennedy SJRoshi e Brenda Eshin Soshanna

Brenda Eshin Shoshanna, é psicóloga, autora, palestrante e praticante de Zen de longa data. Seu trabalho é dedicado a compartilhar a prática Zen com pessoas de todas as origens e integrar a prática em nossa vida cotidiana. Além de lecionar em diversas universidades e apresentar palestras e workshops, Brenda ofereceu um programa mensal sobre Zen e Psicologia na Zen Studies Society, em Nova York, durante oito anos. É autora de Zen e a arte de se apaixonar, Zen Play, (Instruções para se tornar totalmente vivo,) Zen Miracles (Encontrando a paz em um mundo insano), Just Grab The Dust Rag, (Confissões de um estudante Zen iludido Who Never Learned A Thing) e muitos outros livros.




terça-feira, 31 de outubro de 2023

CHRIS COLLINGWOOD - EVANGELHO: MT 13:24-30

À luz da leitura do Evangelho de hoje, me parece a história do joio e do trigo. A questão é: qual é qual? O desejo de purgar tudo o que é considerado impuro exerce uma forte influência sobre um tipo particular de consciência religiosa. É como se tudo que atrapalha o que é considerado pureza, o joio, tivesse que ser arrancado e exorcizado, para que o trigo cresça adequadamente. Vemos isto hoje no fundamentalismo religioso, seja do tipo islâmico ou cristão. Vemos isso também no vandalismo e na destruição da arte e da arquitetura das igrejas deste país e em outros lugares durante a Reforma, para não falar dos mosteiros e da vida monástica. Foram feitas tentativas de justificar isto, claro, e não há dúvida de que algumas coisas boas surgiram como resultado – a acessibilidade da Bíblia em inglês, para citar apenas uma – e ainda assim muita coisa foi perdida. Nem este desejo de purificação está confinado apenas à imaginação religiosa. Pensemos nas várias revoluções do século XX, na Rússia e na China, por exemplo. Não pode haver dúvidas de que a mudança foi necessária em ambos os casos, mas basta olhar para o custo resultante da revolução em termos de opressão, medo, brutalidade e da morte que se seguiu. Da mesma forma, a motivação para a Guerra do Iraque em 2003 foi privar aquele país de um tirano brutal, que se acredita ter fabricado armas de destruição em massa, mas entre as consequências da invasão – não intencional e imprevista, claro – estava o caos que se seguiu, a aumento do terrorismo islâmico e o aumento da tensão entre diferentes culturas e visões de mundo.
 
'Você quer que a gente vá colher as ervas daninhas?' perguntam os escravos do senhor na parábola de Jesus. 'Não', ele responde, 'pois ao colher o joio você arrancaria o trigo junto com ele. Deixe os dois crescerem juntos até a colheita.' O desejo de purgar e purificar sempre corre o risco de destruir não apenas o joio, mas também o trigo. E na maioria das vezes, não está totalmente claro qual é qual. Achamos que sabemos, é claro, mas muitas vezes provamos que estamos errados, e é por isso que Jesus recomenda cautela. Não deixe que seu zelo o cegue para a ecologia das ervas daninhas, Jesus parece dizer, até mesmo para sua beleza, pois sua perspectiva é limitada.
 
Isso é algo que aprendi através da prática da meditação Zen. Existe um equívoco notório de que o propósito da meditação é alcançar estados de bem-aventurança e permanecer intocado pelo resto da vida. Não há dúvida de que a meditação leva à experiência de profunda paz e equanimidade. Muitas vezes, o que inicia a prática da meditação é o desejo de ser aliviado do sofrimento, a sensação de que há mais na vida, um anseio pela plenitude. Em algum momento ao longo do caminho da prática, porém, descobrimos o paradoxo de que a possibilidade de o sofrimento ser aliviado é encontrada quando começamos a aceitá-lo, que a plenitude da vida envolve não rejeitar aqueles aspectos da vida que julgamos inaceitáveis, mas abraçando-os. A plenitude da vida envolve misteriosamente manter juntos o trigo e o joio.
 
O que quero dizer com ervas daninhas neste contexto será familiar para todos nós. Coisas como fortes emoções, como a raiva, tristeza e ansiedade, experiências traumáticas não resolvidas que remontam à infância, decepções e frustrações, conflitos no trabalho e em casa. nas nossas relações com os outros e, só Deus sabe, por vezes estes testes nos desafia quase ao ponto de quebrar. Sabemos que a maneira como lidamos com essas coisas pode ser tóxica e corrosiva, por isso a tentação de eliminá-las é avassaladora. Porém, se as rejeitarmos sem investigar o que podem ter para nos ensinar, perde-se a possibilidade de estas ervas daninhas contribuírem para o crescimento do trigo. Pois, em última análise, as ervas daninhas têm um papel importante a desempenhar, que consiste em permitir o crescimento do amor, da sabedoria e da compaixão.
 
O zazen exige que nos sentemos com toda a sujeira de nossas vidas, a dor e o desconforto, bem como as alegrias e delícias, sem fazer julgamentos sobre como as coisas deveriam ser, confiando que tudo é mantido em amor e compaixão que tudo abraça. Este amor e compaixão constitui em quem realmente somos, e a prática da meditação visa permitir que estas coisas se manifestem não apenas na meditação, mas em toda a vida. Porém, isso só pode acontecer se reconhecermos e cuidarmos também das ervas daninhas.
 
É por isso que o joio e o trigo da parábola de Jesus têm paralelo simbólico com o conto budista do Sutra de Lótus, que só há crescimento na lama. Como diz o mestre Zen vietnamita contemporâneo, Thich Nhat Hanh:
 
“O lótus é a flor mais bela, cujas pétalas se abrem uma a uma. Mas só crescerá na lama. Para crescer e adquirir sabedoria, primeiro você deve ter a lama – os obstáculos da vida e seu sofrimento. (…) A lama fala do terreno comum que os humanos compartilham, não importa qual seja a nossa posição na vida. Quer tenhamos tudo ou não tenhamos nada, todos nós enfrentamos os mesmos obstáculos: tristeza, perda, doença e morte. Se quisermos nos esforçar como seres humanos para obter mais sabedoria, mais bondade e mais compaixão, devemos ter a intenção de crescer como uma flor de lótus e abrir cada pétala, uma por uma.”

Não é exatamente isso que vemos no cerne da fé cristã? Na cruz, Jesus entrou e abraçou a lama do sofrimento, da violência e da desumanidade, e permitiu que eles fossem o próprio meio pelo qual a realidade do amor e da compaixão divinamente humanos fossem reveladas. Podemos especular, é claro, sobre o que poderia ter acontecido sem a cruz, mas, no final, tal especulação é fútil. O fato é que a cruz aconteceu. Jesus se diminuiu diante disso, como todos nós faríamos. 'Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. No entanto, faça não a minha vontade, mas a sua. Nesse ponto, Jesus aceitou a cruz e abraçou tudo o que ela implicaria como o próprio meio pelo qual o amor e a compaixão de Deus seriam revelados. Sem a cruz – o joio, se preferir – simplesmente não conheceríamos o amor de Deus – o trigo – da mesma forma que conhecemos. Os dois estão intrinsecamente ligados um ao outro.
 
O que é verdade para Jesus, porém, também é verdade para nós. Ele abriu o caminho que somos convidados a seguir, para que o amor e a compaixão pudessem ser realizados e manifestados em nós. Pode ser difícil, muitas vezes doloroso, mas só cuidando das ervas daninhas, em vez de arrancá-las prematuramente que elas podem ser transformadas e florescer em trigo. E quem sabe, quando chegar a colheita, afinal poder ser inteiramente trigo.

Domingo, 19 de julho de 2020 – Eucaristia

Mateus 13:24-30, 36-43

                                                    

Chris Collingwood, é um padre anglicano e cônego emérito da Catedral de York, onde foi cônego-chanceler até sua aposentadoria em agosto de 2020. Ele também é professor zen budista na White Plum Asanga, uma associação internacional de professores Zen fundada nos EUA pela linhagem de Taizan Maezumi Rōshi. Chris lidera o Wild Goose Zen Sangha, com sede no Reino Unido, que consiste em várias sanghas na Inglaterra e na Escócia. É o autor de "Zen Wisdom for Christians", (Sabedoria Zen para Cristãos).