De alguma forma, ainda estamos
vivos e conscientes o suficiente para lembrar quanto tempo se passou desde que
Jesus nasceu. Foram mil e nove centos e oitenta e dois anos atrás, certo? E
mesmo tendo a sorte de ter nascido em Shangri-la no Tibete, de ter entrado em
contato com o mundo dos dakas e dakinis, e ter esta oportunidade de conhecer
a história do santo guru Jesus, descobri que entender um pouco da
vida de Jesus me ajudou a desenvolver meu próprio caminho, mas não é fácil
entender os acontecimentos profundos da vida de Jesus. É muito
difícil. Claro, os eventos superficiais de sua vida são bastante fáceis de entender,
mas há não há espaço suficiente em nossa mente para compreender suas elevadas
ações de bodisatva. Mesmo quando o Senhor Jesus e o Senhor Buda estavam
aqui terra, era muito difícil para as pessoas comuns entenderem quem eles
realmente eram. Naquela época, poucas pessoas os entendiam. Hoje eu estava
lendo a Bíblia, em particular o Evangelho de João, e ele falava sobre os
milagres que Jesus realizou e quão poucas pessoas entenderam a profundidade de
sua mente liberada que lhe permitiu realizar tais milagres. De qualquer forma,
sempre que estou em um retiro como este na época do Natal, gosto de
falar sobre essas coisas. Mas vocês precisam entender que, quando faço
isso, não estou tentando ser diplomático. Eu não preciso negociar meu
relacionamento com vocês dessa maneira. Isso é do fundo do meu coração, o que
sinceramente sinto e acredito que simplesmente recordar a vida de Jesus é uma
oportunidade incrível. De certa forma, é claro, não importa de onde as pessoas
vêm – Oriente ou Ocidente – ou de que cor são, aqueles que eliminam o seu
pensamento de auto apreço e dá a vida pelos outros são seres humanos
excepcionais. Por essa razão, estou feliz apenas por trazer Jesus e pensar e
refletir sobre o que ele fez. Além disso, até certo ponto, sou responsável pela
vida e bem estar psicológico dos meus alunos ocidentais, então se quisermos
trazer o budismo para ocidente, precisamos fazer de uma forma saudável, em vez
de introduzir como uma nova viagem exótica. Não precisamos de novas viagens – precisamos
fazer algo construtivo, algo que valha a pena. Qualquer coisa que
verdadeiramente valha a pena não diminui nenhuma outra luz; apenas a aprimora. E
no que diz respeito à saúde psicológica, fazemos parte do meio ambiente e o
meio ambiente faz parte de nós. Portanto, vocês que nasceram no ocidente não
deveriam rejeitar o ambiente cristão em que nasceram. Deveríamos nos considerar
pessoas de sorte termos nascido em uma sociedade cristã e de ter sabedoria para apreender
o que isso significa para a nossa consciência. Especialmente nestes dias, quando há tecnologia
revolucionária perigosa em todos os lugares e o mundo está sobrecarregado com
combates e guerras, nós realmente precisamos lembrar ativamente de
todos os que fizeram o bem no passado.
Então, João explicava como
Deus nos enviou Jesus como testemunha da verdade, mas, infelizmente, algumas
pessoas ignorantes não conseguiram reconhecer quem ele era ou entender o que
ele estava ensinando e o mataram. Na minha opinião, o ponto de vista budista é
que Jesus era um bodisatva, não apenas no sentido de ter realizado a bodichita
e superado o egoísmo, mas no sentido de que, como realizador de milagres, ele
era um santo, como Tilopa e Naropa ou, para citar um exemplo vivo, Sua
Santidade Zong Rinpoche – alguém completamente livre de superstições que às
vezes fazia instintivamente coisas estranhas que, o resto das pessoas não entendiam.
Por exemplo, João diz que um dia Jesus estava perto de uma fonte quando a
mulher veio encher seu jarro. Jesus lhe disse: “Como você pode saciar sua sede
com água? Em primeiro lugar, é a água que deixa você com sede.” Jesus disse a
ela que, já que é a água que a deixa com sede, como a água pode ser a solução
para matar a sua sede? É algum tipo de pensamento reverso. Quem pode entender
isso? Parece loucura, não é? O que ele quis dizer foi que somente a água
espiritual pode realmente saciar a sede. Então vocês podem ver, o significado
real está de alguma forma além das palavras. A mulher está tomando água; ele
diz: “Por que você está fazendo isso? Isso não vai resolver o seu problema de saciar
sua sede.” São diálogos malucos sobre a mente silenciosa. Hoje em dia
provavelmente bateríamos em alguém que falasse assim conosco. Mas, felizmente,
naquela época Jesus não apanhou por falar daquela maneira. João também disse
que como Jesus nasceu de Deus, seus discípulos também eram derivados da energia de
Deus. Isso é semelhante ao que dizem os ensinamentos budistas quando explicam
que todos os shravakas e pratyekabudas nasceram do Buda Shakyamuni. A sensação
aqui é que tais seguidores nascem do discurso de sabedoria e verdade do
professor. Ao internalizar isso, eles descobrem a verdade por si mesmos e se
tornam seres realizados. Filosoficamente, é claro, podemos dizer que o budismo
não aceita que Deus seja a fonte de todos os seres humanos e de todas outras
coisas. Mas de outro ponto de vista, podemos dizer que o budismo também não
contradiz esta afirmação. Por exemplo, de onde vem o reino humano? O Buda disse
que o reino humano é causado pelo carma positivo. Isso é verdade. Se os reinos
superiores não provêm do bom carma, então de onde eles vêm? Então, do ponto de
vista budista, todo bom carma vem do Buda... ou, você pode dizer, que vem de
Deus. Portanto, o reino humano vem de Deus e de Buda. Por causa do discurso
sagrado do Buda, os seres sencientes criam um bom carma. Quero que vocês entendam
bem isso. Ainda assim, filosoficamente vocês podem argumentar este ponto de uma
forma ou de outra. Depende de como vocês interpretam. Vocês podem
interpretar a afirmação de forma negativa ou positiva. Na verdade, vocês podem
fazer qualquer coisa com a filosofia. Agora, com relação a Deus, qual é a
diferença entre Buda e Deus? Hoje direi que, de acordo com o budismo e o cristianismo, as qualidades do Buda e as qualidades de Deus são as mesmas. As
pessoas sempre se preocupam com a criação. “Deus é o criador de tudo; Buda é o
criador de tudo.” Isso significa que o Buda criou a negatividade? Bem, o Buda
disse que, em última análise, não existe positivo e negativo. Os tibetanos
abordam esta questão pegando o exemplo de um rio. Quando nós estamos na margem de
um rio, chamamos a margem oposta de “o outro lado”. Quando estamos naquela
margem chamamos esta de “o outro lado”. Existe este lado e aquele lado, aquele
lado e este lado. É interdependente. Sem o outro lado, este e o outro lado não
existiriam. Da mesma forma, se o positivo não existisse, o negativo também não
poderia existir. Em outras palavras, o negativo vem do positivo, o positivo vem do
negativo. Então talvez vocês argumentem: “Bem, se Deus é o criador, se Deus é a
causa de tudo, como as coisas orgânicas como as plantas, assim como Deus podem ser
permanentes?” As pessoas dizem que Deus é permanente – então como pode algo que
é permanente produzir algo impermanente, como uma planta? A principal causa de
um fenômeno impermanente também deve ser impermanente. Esse tipo de argumento
vem dos budistas, então vou debater com eles: “Então, como você pode dizer que
os shravakas e os pratyekabudas nasceram de Buda? Buda é permanente.” A
resposta é que tais declarações não devem ser interpretadas literalmente. Em
resposta a isso, direi: “Bem, Deus pode ser igual a Buda, no sentido de um ser
pessoal. Deus pode ser uma pessoa da mesma forma que o Buda Shakyamuni foi.”
Não é como se um Deus permanente estivesse sentado em algum lugar. Deus pode
ser algo orgânico, um ser pessoal com quem você pode se relacionar
pessoalmente. Eu lhe digo, os filósofos sempre tentam tornar tudo muito
especial. "Deus. Buda. Deus é isso; Buda é aquilo.”
Eles colocaram Deus e Buda em
algum tipo de pedestal intocável, de modo que as pessoas comuns não conseguissem
se identificar com eles. Eles tornam impossível compreender a natureza de Deus,
a natureza de Buda. Isso é estupido. Eles apenas criam mais obstáculos para as
pessoas. Então os seres humanos, com suas mentes limitadas, tentam colocar chocolate
e chantilly em Deus, e passar numa faca. Eles depositam seu próprio lixo em
Deus. Está tudo errado; definitivamente errado. Eu realmente acredito que às
vezes a filosofia pode se tornar um obstáculo para as pessoas realmente
compreenderem a natureza de Deus e de Buda. Talvez eu seja um revolucionário,
mas rejeito muitas das posições filosóficas sobre estas questões. No entanto,
personificar Deus ou Buda não contradiz a sua natureza onipresente. Podemos
falar das qualidades pessoais de Heruka, por exemplo, mas ao mesmo tempo ele é
universal e onipresente. Precisamos entender isso. Um dos problemas que
encontramos no ambiente ocidental é a opinião negativa que as pessoas
geralmente têm dos seres humanos. Eles os consideram no mesmo nível dos peixes
e das galinhas: são um incômodo; eles são muito complicados. Não temos respeito
pela dignidade humana. As pessoas podem ter qualidades transcendentes enquanto
humanas, mas não entendemos isso. Portanto, as pessoas que tentam explicar a
Bíblia e Deus têm que separar os seres humanos de Deus: “Os humanos aqui
embaixo são os piores. Eles são como fantasmas famintos, negativos e pecadores,
enquanto Deus está lá em cima, perfeito e puro.” Isso está errado. Se você
quiser tocar Deus com a mente humana, terá que estabelecer um relacionamento
entre Deus e os seres humanos. Você não pode dizer que Deus é perfeito e os
humanos são sujos. Sem chance. Além disso, a Bíblia usa o termo Deus pessoal ou
algo parecido. Quando Sua Santidade o Dalai Lama visitou a Espanha no início
deste ano, ficamos num mosteiro cristão. Havia cerca de trinta monges idosos
ali; alguns eram muito velhos. Estávamos todos sentados juntos, nos divertindo
fantasticamente, nos comunicando muito bem, meio que totalmente unidos, tendo
uma longa conversa sobre religião, e um monge, ele devia ter uns cinquenta
anos, descreveu Deus exatamente da mesma maneira que eu estava pensando. Eu
estava em choque. Eu disse: “A maneira como você descreve Deus está explicado
na Bíblia?” Ele disse que sim. De alguma forma, estávamos pensando em Deus da
mesma maneira. Depois tivemos uma discussão sobre o vazio. Sua Santidade
perguntou ao monge: “O que você acha que é o vazio?” O monge respondeu:
“Desapego é vazio”. Para mim, essa foi uma resposta completamente satisfatória.
Eu me prostro diante de qualquer um que responda dessa maneira. Não tenho
dúvidas para com ninguém que pensa que o desapego é vazio. Isso é ótimo. Fiquei
muito impressionado. Bem, qual é a diferença? Se você perguntar aos budistas
inteligentes o que é o vazio, eles dirão a não-auto-existência, mas para mim,
com a mente silenciosa, a resposta desapego é muito mais admirável. Estou
falando sobre minha experiência. Se alguém me diz que desapego é vazio, isso
toca meu coração. Filosoficamente, a resposta não-auto-existência é perfeita,
mas é totalmente seca. Não tem nenhum sentimento. Do ponto de vista filosófico,
dizer que o desapego é vazio pode até ser errado. Os filósofos tibetanos
olharão de soslaio e dirão: “Uau, que tipo de resposta é essa?” Há aquela
história de um geshe intelectual perguntando ao grande iogue Milarepa: “O que é
o Vinaya?” Milarepa respondeu: “Eu não diferencio Vinaya de não-Vinaya. Tudo o
que sei é que se minha mente estiver subjugada, isso é Vinaya.” Essa foi uma
resposta incrível, não foi? Uma resposta inacreditável. Novamente,
filosoficamente, a resposta de Milarepa estava errada, mas na verdade, foi
realmente a resposta perfeita. Se você olhar para trás, para o verdadeiro
Vinaya, essa foi absolutamente uma resposta do Vinaya. Mas se você está apenas
brincando com as palavras, foi um desastre! Então o geshe fez outra pergunta,
tentando controlar a situação: “O que é dicotomia?” Milarepa disse: “Bem, não
sei”. Aqui não me lembro exatamente como foi. Minha memória não é tão boa. De
qualquer forma, Milarepa disse: “Bem, não sei, meu querido amigo, mas acho que a
mente oposta ao Dharma, isso é dicotomia”. Essa também foi uma boa resposta,
não foi? Você provavelmente se lembra dessa história. O Vinaya não é apenas
para monges e freiras. É para todos integrarem suas mentes com o Dharma;
subjugá-lo com o Dharma. Então, quando um monge cristão diz que desapego é
vazio, para mim essa é uma resposta que vai ao fundo. A mente do apego mantém
uma concepção que é o oposto da sabedoria do vazio, porque o apego superestima
a qualidade do seu objeto e projeta isso em sua realidade. O apego existe
porque não entendemos a natureza do objeto. Se compreendermos o verdadeiro
pensamento cristão, que o apego é um problema humano, mas podemos ir além dele,
teremos uma resposta profunda.
Do meu ponto de vista, aqueles
monges cristãos levavam uma vida mais ascética do que a maioria dos monges
tibetanos. Essa é apenas minha opinião. Não estou menosprezando os tibetanos.
Eu sou tibetano. Não há razão para eu me rebaixar. Eu não sou idiota. Ou talvez
eu esteja sendo. O mosteiro onde viviam esses monges é muito isolado. Cada monge
tinha sua própria cela, que possuía uma pequena abertura por onde a comida passava. Eles são totalmente independentes. Há um pequeno jardim nos fundos, que
não pode ser visto de fora. Foi inacreditável. Fiquei muito impressionado e
tenho grande respeito pelo cristianismo ocidental. Eu não estou brincando.
Estou muito velho para brincar! E não estou dizendo “o cristianismo é ótimo”
por algum propósito político. Também estou velho demais para políticas. Esses monges simplesmente tocaram meu coração. Eu nunca tinha visto isso antes; Eu
nunca tinha visto um mosteiro ocidental com monges vivendo vidas tão puras
e ascéticas com uma prática tão forte. Essa foi a primeira vez que vi isso por mim
mesmo. Eu estava tão feliz. Bem, acho que meu tempo acabou.
Agora tenho que
terminar minha apresentação. Mas não tenho certeza de como terminar. No entanto, a minha conclusão é que eu gostaria que todos vocês
tentassem unificar suas atitudes em relação ao budismo e ao cristianismo; para
ver como o budismo pode de alguma forma ajudar a religião do seu próprio país.
Ajude os cristãos a compreender melhor o budismo e ajude os budistas a
compreender melhor o cristianismo da mente silenciosa, para que possamos
respeitar uns aos outros, ter devoção uns pelos outros, tocar uns aos outros.
Essa é a maneira mais saudável de ser. Como estou fora da sociedade ocidental,
apenas observo isso objetivamente. Na minha perspectiva, os ocidentais foram grandemente influenciados
por Jesus e pela religião cristã. Isso é muito valioso, tão valioso. Sua bondade,
sua tranquilidade, sua bondade amorosa – tudo isso realmente vem da religião
cristã. Você não recebe nada disso da política, não é? O que a política do seu
país traz é derramamento de sangue. Então, do meu ponto de vista, eu lhe dou
permissão para se tornar cristão amanhã. Eu me alegro. Vou te contar uma coisa:
não sou apegado a essas coisas. Eu realmente acredito nisso. Se vocês viessem até
mim amanhã e dissessem: “Lama, descobrimos que nossa religião tradicional tem tanto
valor que decidi me ser cristão”, eu diria: “Muito obrigado”. Não machucaria
meu ego. “Estaria feliz! Ótimo, vá à igreja. Tudo bem. Portanto, neste momento
temos muita sorte de poder lembrar a vida profunda dos santos cristãos e o
trabalho árduo que realizaram. Vale muito a pena regozijar-se com o que eles
realizaram. Não apenas os santos do passado, mas também os do presente, aqueles
que levam vidas ascéticas, dando as suas vidas para ajudar e trabalhar pelos
outros em sua sociedade. Devemos orar pelo seu sucesso e crescimento
espiritual, para que em breve percebam e se unifiquem com a Divindade.
Historicamente, também podemos ver outras pessoas altruístas que vieram à
Terra, como Gandhi-ji. Embora alguns não o apreciem, ele foi um grande homem
que ajudou o povo indiano a se libertar do nariz inglês! E embora fosse um político
muito hábil, a sua filosofia básica era ahimsa e compaixão, e com isso libertou
o povo indiano da opressão britânica. Em troca, foi assassinado, mas também
aceitou isso. Vocês podem ver quantos bilhões de pessoas existem na terra, e esse
número continua aumentando, mas quantos estão preparados para se sacrificar um pelos outros? É muito raro alguém fazer isso, como quando em uma de suas vidas
anteriores como príncipe, o Buda Shakyamuni sacrificou seu corpo à mãe tigresa
faminta e seus filhotes. Jesus deu de si mesmo e Gandhi-ji também. Quem mais
foi capaz de fazer o que eles fizeram? Oferecer publicamente a sua vida para
salvar a de outra pessoa é muito raro, não é? Não estudei muito história, mas
não creio que existam muitas histórias assim. Agora, não temos que dar a nossa
vida ou o nosso corpo, mas podemos diminuir o nosso egoísmo, podemos
desenvolver mais atenção com a felicidade dos outros do que com a nossa.
Então motivem-se fortemente, assim: “Essas pessoas foram incríveis. Eles não tinham
um pingo de egoísmo em seu corpo e se entregaram totalmente aos outros. Eu
simplesmente não consigo me imaginar fazendo isso. Eles eram tão bons. A bodichita
deles deve ter sido incrivelmente bem desenvolvida; eles devem ter tido uma
enorme bondade amorosa e compaixão pelos outros; eles devem ter transcendido
toda dor. “Então, tanto quanto eu puder, pelo resto da minha vida, dedicarei
minha mente silenciosa, corpo, fala e mente e qualquer riqueza que tiver para
beneficiar os outros. De agora em diante, pertenço aos outros e eles podem contar
comigo como quiserem. Que eu e todas as mães e seres sencientes nunca nos
separemos do professor bodisatva nesta e em todas as nossas vidas futuras.”