À luz da leitura do Evangelho de hoje, me
parece a história do joio e do trigo. A questão é: qual é qual? O
desejo de purgar tudo o que é considerado impuro exerce uma forte influência
sobre um tipo particular de consciência religiosa. É como se tudo que
atrapalha o que é considerado pureza, o joio, tivesse que ser arrancado e
exorcizado, para que o trigo cresça adequadamente. Vemos isto hoje no fundamentalismo
religioso, seja do tipo islâmico ou cristão. Vemos isso também no
vandalismo e na destruição da arte e da arquitetura das igrejas deste país e em
outros lugares durante a Reforma, para não falar dos mosteiros e da vida
monástica. Foram feitas tentativas de justificar isto, claro, e não há
dúvida de que algumas coisas boas surgiram como resultado – a acessibilidade da
Bíblia em inglês, para citar apenas uma – e ainda assim muita coisa foi
perdida. Nem este desejo de purificação está confinado
apenas à imaginação religiosa. Pensemos nas várias revoluções do século XX,
na Rússia e na China, por exemplo. Não pode haver dúvidas de que a mudança
foi necessária em ambos os casos, mas basta olhar para o custo resultante da
revolução em termos de opressão, medo, brutalidade e da morte que se seguiu. Da mesma forma, a motivação para a Guerra do
Iraque em 2003 foi privar aquele país de um tirano brutal, que se acredita ter
fabricado armas de destruição em massa, mas entre as consequências da invasão –
não intencional e imprevista, claro – estava o caos que se seguiu, a aumento do
terrorismo islâmico e o aumento da tensão entre diferentes culturas e visões de
mundo.
'Você quer que a gente vá colher as ervas
daninhas?' perguntam os escravos do senhor na parábola de
Jesus. 'Não', ele responde, 'pois ao colher o joio você arrancaria o trigo
junto com ele. Deixe os dois crescerem juntos até a colheita.' O
desejo de purgar e purificar sempre corre o risco de destruir não apenas o
joio, mas também o trigo. E na maioria das vezes, não está totalmente
claro qual é qual. Achamos que sabemos, é claro, mas muitas vezes provamos
que estamos errados, e é por isso que Jesus recomenda cautela. Não deixe
que seu zelo o cegue para a ecologia das ervas daninhas, Jesus parece dizer,
até mesmo para sua beleza, pois sua perspectiva é limitada.
Isso é algo que aprendi através da prática da
meditação Zen. Existe um equívoco notório de que o propósito da meditação
é alcançar estados de bem-aventurança e permanecer intocado pelo resto da
vida. Não há dúvida de que a meditação leva à experiência de profunda paz
e equanimidade. Muitas vezes, o que inicia a prática da meditação é o
desejo de ser aliviado do sofrimento, a sensação de que há mais na vida, um
anseio pela plenitude. Em algum momento ao longo do caminho da prática,
porém, descobrimos o paradoxo de que a possibilidade de o sofrimento ser
aliviado é encontrada quando começamos a aceitá-lo, que a plenitude da vida
envolve não rejeitar aqueles aspectos da vida que julgamos inaceitáveis, mas
abraçando-os. A plenitude da vida envolve misteriosamente manter juntos o
trigo e o joio.
O que quero dizer com ervas daninhas neste
contexto será familiar para todos nós. Coisas como fortes emoções, como a raiva,
tristeza e ansiedade, experiências traumáticas não resolvidas que remontam à
infância, decepções e frustrações, conflitos no trabalho e em casa. nas nossas
relações com os outros e, só Deus sabe, por vezes estes testes nos desafia
quase ao ponto de quebrar. Sabemos que a maneira como lidamos com essas
coisas pode ser tóxica e corrosiva, por isso a tentação de eliminá-las é
avassaladora. Porém, se as rejeitarmos sem investigar o que podem ter para
nos ensinar, perde-se a possibilidade de estas ervas daninhas contribuírem para
o crescimento do trigo. Pois, em última análise, as ervas daninhas têm um
papel importante a desempenhar, que consiste em permitir o crescimento do amor,
da sabedoria e da compaixão.
O zazen exige que nos sentemos com toda a
sujeira de nossas vidas, a dor e o desconforto, bem como as alegrias e
delícias, sem fazer julgamentos sobre como as coisas deveriam ser, confiando
que tudo é mantido em amor e compaixão que tudo abraça. Este amor e
compaixão constitui em quem realmente somos, e a prática da meditação visa
permitir que estas coisas se manifestem não apenas na meditação, mas em toda a
vida. Porém, isso só pode acontecer se reconhecermos e cuidarmos também
das ervas daninhas.
É por isso que o joio e o trigo da parábola de
Jesus têm paralelo simbólico com o conto budista do Sutra de Lótus, que só há
crescimento na lama. Como diz o mestre Zen vietnamita contemporâneo, Thich
Nhat Hanh:
“O lótus é a flor mais bela, cujas pétalas se
abrem uma a uma. Mas só crescerá na lama. Para crescer e adquirir
sabedoria, primeiro você deve ter a lama – os obstáculos da vida e seu
sofrimento. (…) A lama fala do terreno comum que os humanos compartilham,
não importa qual seja a nossa posição na vida. Quer tenhamos tudo ou não
tenhamos nada, todos nós enfrentamos os mesmos obstáculos: tristeza, perda, doença
e morte. Se quisermos nos esforçar como seres humanos para obter mais
sabedoria, mais bondade e mais compaixão, devemos ter a intenção de crescer
como uma flor de lótus e abrir cada pétala, uma por uma.”
Não é exatamente isso que vemos no cerne da fé
cristã? Na cruz, Jesus entrou e abraçou a lama do sofrimento, da violência
e da desumanidade, e permitiu que eles fossem o próprio meio pelo qual a
realidade do amor e da compaixão divinamente humanos fossem
reveladas. Podemos especular, é claro, sobre o que poderia ter acontecido
sem a cruz, mas, no final, tal especulação é fútil. O fato é que a cruz
aconteceu. Jesus se diminuiu diante disso, como todos nós
faríamos. 'Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. No
entanto, faça não a minha vontade, mas a sua. Nesse ponto, Jesus aceitou a
cruz e abraçou tudo o que ela implicaria como o próprio meio pelo qual o amor e
a compaixão de Deus seriam revelados. Sem a cruz – o joio, se preferir –
simplesmente não conheceríamos o amor de Deus – o trigo – da mesma forma que
conhecemos. Os dois estão intrinsecamente ligados um ao outro.
O que é verdade para Jesus, porém, também é
verdade para nós. Ele abriu o caminho que somos convidados a seguir, para
que o amor e a compaixão pudessem ser realizados e manifestados em
nós. Pode ser difícil, muitas vezes doloroso, mas só cuidando das ervas
daninhas, em vez de arrancá-las prematuramente que elas podem ser transformadas
e florescer em trigo. E quem sabe, quando chegar a colheita, afinal poder
ser inteiramente trigo.
Domingo, 19 de julho de
2020 – Eucaristia
Mateus 13:24-30, 36-43
Chris Collingwood, é
um padre anglicano e cônego emérito da Catedral de York, onde foi cônego-chanceler até sua aposentadoria em agosto de 2020. Ele também é professor zen budista na White Plum Asanga, uma associação internacional de professores Zen fundada
nos EUA pela linhagem de Taizan Maezumi Rōshi. Chris lidera o Wild Goose Zen
Sangha, com sede no Reino Unido, que consiste em várias sanghas na
Inglaterra e na Escócia. É o autor de "Zen Wisdom for Christians", (Sabedoria Zen para Cristãos).