terça-feira, 31 de outubro de 2023

CHRIS COLLINGWOOD - EVANGELHO: MT 13:24-30

À luz da leitura do Evangelho de hoje, me parece a história do joio e do trigo. A questão é: qual é qual? O desejo de purgar tudo o que é considerado impuro exerce uma forte influência sobre um tipo particular de consciência religiosa. É como se tudo que atrapalha o que é considerado pureza, o joio, tivesse que ser arrancado e exorcizado, para que o trigo cresça adequadamente. Vemos isto hoje no fundamentalismo religioso, seja do tipo islâmico ou cristão. Vemos isso também no vandalismo e na destruição da arte e da arquitetura das igrejas deste país e em outros lugares durante a Reforma, para não falar dos mosteiros e da vida monástica. Foram feitas tentativas de justificar isto, claro, e não há dúvida de que algumas coisas boas surgiram como resultado – a acessibilidade da Bíblia em inglês, para citar apenas uma – e ainda assim muita coisa foi perdida. Nem este desejo de purificação está confinado apenas à imaginação religiosa. Pensemos nas várias revoluções do século XX, na Rússia e na China, por exemplo. Não pode haver dúvidas de que a mudança foi necessária em ambos os casos, mas basta olhar para o custo resultante da revolução em termos de opressão, medo, brutalidade e da morte que se seguiu. Da mesma forma, a motivação para a Guerra do Iraque em 2003 foi privar aquele país de um tirano brutal, que se acredita ter fabricado armas de destruição em massa, mas entre as consequências da invasão – não intencional e imprevista, claro – estava o caos que se seguiu, a aumento do terrorismo islâmico e o aumento da tensão entre diferentes culturas e visões de mundo.
 
'Você quer que a gente vá colher as ervas daninhas?' perguntam os escravos do senhor na parábola de Jesus. 'Não', ele responde, 'pois ao colher o joio você arrancaria o trigo junto com ele. Deixe os dois crescerem juntos até a colheita.' O desejo de purgar e purificar sempre corre o risco de destruir não apenas o joio, mas também o trigo. E na maioria das vezes, não está totalmente claro qual é qual. Achamos que sabemos, é claro, mas muitas vezes provamos que estamos errados, e é por isso que Jesus recomenda cautela. Não deixe que seu zelo o cegue para a ecologia das ervas daninhas, Jesus parece dizer, até mesmo para sua beleza, pois sua perspectiva é limitada.
 
Isso é algo que aprendi através da prática da meditação Zen. Existe um equívoco notório de que o propósito da meditação é alcançar estados de bem-aventurança e permanecer intocado pelo resto da vida. Não há dúvida de que a meditação leva à experiência de profunda paz e equanimidade. Muitas vezes, o que inicia a prática da meditação é o desejo de ser aliviado do sofrimento, a sensação de que há mais na vida, um anseio pela plenitude. Em algum momento ao longo do caminho da prática, porém, descobrimos o paradoxo de que a possibilidade de o sofrimento ser aliviado é encontrada quando começamos a aceitá-lo, que a plenitude da vida envolve não rejeitar aqueles aspectos da vida que julgamos inaceitáveis, mas abraçando-os. A plenitude da vida envolve misteriosamente manter juntos o trigo e o joio.
 
O que quero dizer com ervas daninhas neste contexto será familiar para todos nós. Coisas como fortes emoções, como a raiva, tristeza e ansiedade, experiências traumáticas não resolvidas que remontam à infância, decepções e frustrações, conflitos no trabalho e em casa. nas nossas relações com os outros e, só Deus sabe, por vezes estes testes nos desafia quase ao ponto de quebrar. Sabemos que a maneira como lidamos com essas coisas pode ser tóxica e corrosiva, por isso a tentação de eliminá-las é avassaladora. Porém, se as rejeitarmos sem investigar o que podem ter para nos ensinar, perde-se a possibilidade de estas ervas daninhas contribuírem para o crescimento do trigo. Pois, em última análise, as ervas daninhas têm um papel importante a desempenhar, que consiste em permitir o crescimento do amor, da sabedoria e da compaixão.
 
O zazen exige que nos sentemos com toda a sujeira de nossas vidas, a dor e o desconforto, bem como as alegrias e delícias, sem fazer julgamentos sobre como as coisas deveriam ser, confiando que tudo é mantido em amor e compaixão que tudo abraça. Este amor e compaixão constitui em quem realmente somos, e a prática da meditação visa permitir que estas coisas se manifestem não apenas na meditação, mas em toda a vida. Porém, isso só pode acontecer se reconhecermos e cuidarmos também das ervas daninhas.
 
É por isso que o joio e o trigo da parábola de Jesus têm paralelo simbólico com o conto budista do Sutra de Lótus, que só há crescimento na lama. Como diz o mestre Zen vietnamita contemporâneo, Thich Nhat Hanh:
 
“O lótus é a flor mais bela, cujas pétalas se abrem uma a uma. Mas só crescerá na lama. Para crescer e adquirir sabedoria, primeiro você deve ter a lama – os obstáculos da vida e seu sofrimento. (…) A lama fala do terreno comum que os humanos compartilham, não importa qual seja a nossa posição na vida. Quer tenhamos tudo ou não tenhamos nada, todos nós enfrentamos os mesmos obstáculos: tristeza, perda, doença e morte. Se quisermos nos esforçar como seres humanos para obter mais sabedoria, mais bondade e mais compaixão, devemos ter a intenção de crescer como uma flor de lótus e abrir cada pétala, uma por uma.”

Não é exatamente isso que vemos no cerne da fé cristã? Na cruz, Jesus entrou e abraçou a lama do sofrimento, da violência e da desumanidade, e permitiu que eles fossem o próprio meio pelo qual a realidade do amor e da compaixão divinamente humanos fossem reveladas. Podemos especular, é claro, sobre o que poderia ter acontecido sem a cruz, mas, no final, tal especulação é fútil. O fato é que a cruz aconteceu. Jesus se diminuiu diante disso, como todos nós faríamos. 'Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. No entanto, faça não a minha vontade, mas a sua. Nesse ponto, Jesus aceitou a cruz e abraçou tudo o que ela implicaria como o próprio meio pelo qual o amor e a compaixão de Deus seriam revelados. Sem a cruz – o joio, se preferir – simplesmente não conheceríamos o amor de Deus – o trigo – da mesma forma que conhecemos. Os dois estão intrinsecamente ligados um ao outro.
 
O que é verdade para Jesus, porém, também é verdade para nós. Ele abriu o caminho que somos convidados a seguir, para que o amor e a compaixão pudessem ser realizados e manifestados em nós. Pode ser difícil, muitas vezes doloroso, mas só cuidando das ervas daninhas, em vez de arrancá-las prematuramente que elas podem ser transformadas e florescer em trigo. E quem sabe, quando chegar a colheita, afinal poder ser inteiramente trigo.

Domingo, 19 de julho de 2020 – Eucaristia

Mateus 13:24-30, 36-43

                                                    

Chris Collingwood, é um padre anglicano e cônego emérito da Catedral de York, onde foi cônego-chanceler até sua aposentadoria em agosto de 2020. Ele também é professor zen budista na White Plum Asanga, uma associação internacional de professores Zen fundada nos EUA pela linhagem de Taizan Maezumi Rōshi. Chris lidera o Wild Goose Zen Sangha, com sede no Reino Unido, que consiste em várias sanghas na Inglaterra e na Escócia. É o autor de "Zen Wisdom for Christians", (Sabedoria Zen para Cristãos).