Imagine um homem, uma mulher ou um grupo de pessoas sentados em silêncio por uma ou meia hora num lugar tranquilo onde não se ouve nem rádio nem música de fundo. Não falam. Não rezam alto. Não tem livros ou papéis nas mãos. Não estão lendo nem escrevendo. Não estão ocupados com nada. Eles simplesmente entram em si mesmos, não para pensar de modo analítico, não para examinar, organizar, planejar, mas simplesmente para ser. Eles querem estar juntos em silêncio. Querem sintetizar, integrar-se, redescobrir-se numa unidade de pensamento, de vontade, compreensão e amor para além das palavras, para além da análise, até mesmo para a além do pensamento consciente. Querem rezar, não com os lábios, mas com seus corações silenciosos e, além disso, com a própria base de seu ser.
O que levaria pessoas modernas a fazerem uma coisa dessas?
Seriam movidas por um sentido de necessidade humana de silêncio, de reflexão, de busca interior? Quereriam fugir do barulho e da tensão da vida moderna, pelo menos por alguns momentos, a fim de relaxar a mente e a vontade e buscar uma abençoada e saudável sensação de unidade interior, de reconciliação, de integração? Estes são motivos bastante bons. Mas para um cristão existem motivos ainda mais profundos. O cristão pode se perceber chamado por Deus para períodos de silêncio, de reflexão, de meditação e de escuta. Somos, talvez, falantes demais, ativos demais na nossa concepção da vida cristã. Nosso serviço de Deus e da Igreja não consiste apenas em falar e fazer. Também pode consistir em períodos de escuta, de espera. Talvez seja muito importante, na nossa época de violência e inquietação, redescobrir a meditação, a oração unitiva, interior, silenciosa, e o silêncio criativo cristão.
O silêncio tem muitas dimensões. Pode ser uma regressão e uma fuga, uma perda de si, ou pode ser presença, atenção, unificação e autodescoberta. O silêncio negativo tolda e confunde nossa identidade e caímos em devaneios ou ansiedades difusas. O silêncio positivo nos refaz e nos permite perceber quem somos, quem poderíamos ser e a distância entre os dois. Portanto, o silêncio criativo implica uma escolha disciplinada e o que Paul Tillich chamou de coragem de ser. A longo prazo, a disciplina do silêncio criativo exige um certo tipo de fé. Pois quando ficamos cara a cara conosco, no fundo solitário de nosso próprio ser, confrontamos-nos com muitas questões sobre o valor da existência, a realidade de nossos compromissos, a autenticidade de nossa vida cotidiana.
Quando estamos o tempo todo em movimento, sempre ocupados com as exigências de nosso papel social, quando somos levados passivamente pela corrente de conversa na qual as pessoas se envolvem o dia inteiro, talvez sejamos capazes de escapar de nosso eu mais profundo e das questões que ele coloca. Podemos estar mais ou menos satisfeitos com a identidade externa, com o seu social, que é produzido por nossa interação com os outros na agitação do cotidiano. Mas não importa quão honestos e abertos possamos ser em nossas relações com os outros, esse eu social implica um elemento necessário de artificio. É sempre, de certo modo, uma máscara. Tem de ser. Mesmo o gosto americano pela franqueza, pela simplicidade despretensiosa, pela afabilidade, pela naturalidade e pelo humor e muitas vezes, uma fachada. Algumas pessoas são naturalmente assim. Outras se educam para desempenhar esse papel a fim de serem aceitas pela sociedade. Tampouco essas características são inteiramente fingimento: elas nos atraem. Mas será que nos vamos, alguma vez, ter a chance de perceber que essa personagem falante, sorridente, talvez despachada, que parecemos ser não é necessariamente nosso eu real? Damos-nos a chance de reconhecer alguma coisa mais profunda? Podemos enfrentar o fato de que talvez não estejamos interessados em toda essa conversa e esse negócio? Quando ficamos quietos, não por alguns minutos apenas, mas por uma ou várias horas, podemos nos sentir desconfortavelmente conscientes da presença dentro de nós de um estranho perturbados, o eu que é, ao mesmo tempo eu e mais alguém. O eu que não é inteiramente bem vindo na sua própria casa porque é tão diferente da personagem cotidiana que construímos a partir de nossas relações com os outros e de nossa infidelidade a nós mesmos.
Há um eu calado dentro de nós cuja presença é perturbadora precisamente porque é tão calado: ele não pode ser falado. Tem de permanecer calado. Articulá-lo, verbalizá-lo é corrompê-lo, e sob certos aspectos destruí-lo.
Ora, enfrentamos francamente o fato de que nossa cultura está de muitos modos organizada para nos ajudar a fugir de qualquer necessidade de enfrentar esse eu silencioso, interior.
Vivemos em estado de constante semi-atenção ao som de vozes,música, tráfego, ou ao ruído generalizado à nossa volta o tempo todo. Isso nos mantém imersos num mar de ruídos e de palavras, num ambiente difuso no qual nossa consciência fica meio diluída: não estamos exatamente pensando, nem inteiramente reagindo, mas estamos mais ou menos ali. Não estamos plenamente presentes nem inteiramente ausentes: não estamos plenamente recolhidos nem tampouco completamente disponíveis. Não se pode dizer que estamos participando de alguma coisa e podemos, de fato, estar meio conscientes de nossa alienação e indignação. Encontramos contudo, um certo conforto na vaga sensação de que fazemos "parte de" algo, embora não sejamos muito capazes de definir o que é esse algo - e provavelmente não haveríamos de querer defini-lo, mesmo que pudéssemos. Simplesmente flutuamos no ruído geral. Resignados e indiferentes, participamos subconscientemente do cérebro acéfalo da Muzak e dos comerciais de rádio que se fazem passar por realidade.
Naturalmente isso não basta para nos fazer esquecer completamente do outro eu inconveniente que permanece em grande parte inconsciente. A presença perturbadora de nosso eu profundo fica forçando seu caminho até quase a superfície da consciência. Para exorcizar essa presença precisamos de um estímulo mais definido, uma distração, um drinque, uma droga, um truque, um jogo, uma rotina de encenar nossa sensação de alienação e inquietação. Aí ela se vai por um tempo, e esquecemos quem somos. Tudo isso pode ser descrito como ruído, e como tumulto e congestionamento que abafam as exigências profundas, secretas e insistentes do eu interior.
Com esse eu interior temos de entrar em acordo no silêncio. Essa é a razão para escolher o silêncio. No silêncio enfrentamos e admitimos a brecha entre as profundezas de nosso ser, que ignoramos constantemente, e a superfície que é infiel à nossa própria realidade. Reconhecemos a necessidade de estar à vontade conosco a fim de ir ao encontro dos outros, não com apenas uma máscara de afabilidade, mas com um compromisso real e um amor autêntico.
Se temos medo de ficar sozinhos, medo do silêncio, talvez seja em virtude de nossa secreta desesperança de reconciliação íntima. Se não temos a esperança de ficar em paz conosco em nossa própria solidão e em nosso silêncio pessoal jamais seremos capazes de nos encarar: continuaremos correndo sem parar. E essa fuga do eu é, como indicou o filósofo suiço Max Picard, uma fuga de Deus. A final de contas, é nas profundezas da consciência que Deus fala e, se recusamos a nos abrir por dentro e a olhar essas profundezas, também recusamos nos confrontar com o DEUS invisível presente dentro de nós. Essa recusa é uma admissão parcial de que não queremos que Deus seja Deus, assim como não queremos que nós mesmos sejamos nossos eus verdadeiros.
Assim como temos uma máscara externa, superficial, que juntamos às palavras e às ações que não representam tudo o que está em nós, também os crentes tratam com um Deus que é feito de palavras, sentimentos, slogans reconfortantes, um Deus que é menos o Deus da fé do que o produto de rotina social e religiosa. Tal Deus pode se tornar o substituto da verdade do Deus invisível da fé do que o produto de rotina social e religiosa. Tal Deus pode se tornar o substituto da verdade do Deus invisível da fé, e, embora essa imagem reconfortante possa nos parecer real, é realmente uma espécie de ídolo. Sua função principal é proteger-nos de um encontro profundo com nosso verdadeiro eu interior e com o verdadeiro Deus.
O silêncio é portanto importante, mesmo na vida de fé e em nosso encontro mais profundo em Deus. Não podemos estar sempre falando, rezando com palavras, engabelando argumentando ou mantendo uma espécie de música de fundo devota. Muito do nosso diálogo interior bem intencionado é, de fato, uma cortina de fumaça e uma evasão. Boa parte dele é simplesmente auto-afirmação e, no fim, pouco melhor do que uma forma de justificação de si. Em vez de realmente encontrar DEUS no despojamento da fé, no qual nosso ser mais íntimo se apresenta nu diante dele, encenamos um ritual interior cuja única função é acalmar a ansiedade.
A fé mais pura tem de ser testada pelo silêncio no qual ficamos à escuta do inesperado, no qual ficamos abertos para o que ainda não conhecemos e no qual devagar e gradualmente nos preparamos para o dia em que alcançaremos um novo nível de estar com Deus. A verdadeira esperança é testada pelo silêncio no qual temos de servir ao SENHOR na obediência de uma fé inquestionável. Isaías lembra as palavras de Javé ao seu povo rebelde, que o estava sempre abandonando a fim de fazer alianças políticas e militares inúteis. "Vossa segurança está em cessar de fazer ligas, vossa força está na fé tranquila" (Is 30-15), ou em outra tradução: "Vossa salvação está na conversão e no repouso, vossa força está na calma e na confiança". Textos mais antigos dizem: "No silêncio e na esperança estará a vossa força". A ideia é de que a fé exige o silenciar de transações e estratégias questionáveis. A fé exige a integridade da confiança interior que produz inteireza, unidade, paz, segurança genuína. Vemos aqui o poder criador e fértil do silêncio. O silêncio não só nos dá a chance de nos compreendemos melhor, de obtermos uma perspectiva mais verdadeira e equilibrada de nossas próprias vidas em relação à vida dos outros: o silêncio nos torna inteiros, se permitimos. O silêncio ajuda a reunir as energias dissipadas e dispersas de uma existência fragmentada. Ajuda-nos a nos concentrarmos num propósito que realmente corresponde não só às necessidades mais profundas de nosso próprio ser, como também às intenções de Deus para nós.
Este é um ponto realmente importante. Quando vivemos superficialmente, quando estamos sempre fora de nós mesmos, nunca inteiramente com nós mesmos, sempre divididos e solicitados em muitas direções por projetos e planos conflitantes, acabamos fazendo muitas coisas que não queremos realmente fazer, dizendo coisas que não pensamos realmente, necessitando de coisas das quais realmente não precisamos, exaurindo-nos com o que secretamente percebemos ser sem valor e sem sentido em nossas vidas: "Por que gastais dinheiro com aquilo que não pode satisfazer?" (IS 55,2).
O psicólogo Eric Fromm observou que essa contradição íntima, derivada da alienação e da frustração da vida americana, é uma das raízes da violência em nossa sociedade. Estamos em conflito com nós mesmos e buscamos alívio nas fantasias e nos dramas de violência. É tudo simplesmente uma amplificação da indignação e do clamor interior que nos satura quando ignoramos continuamente as exigências de nosso eu real mais íntimo e de Deus dentro de nós.
Em muitas religiões sempre se deu grande importância à prática da meditação silenciosa. Isto se verifica particularmente no hinduísmo e no budismo, onde a arte da meditação e o cultivo do silêncio anterior estão no âmago de todas as coisas. Mas isto também verifica-se no cristianismo. O monaquismo católico sempre enfatizou a importância da meditação silenciosa sobre a palavra de Deus. Os quakers sempre deram muita importância a uma escuta comunitária do movimento interior do Espírito. Até mesmo Dietrich Bonhoeffer, o apóstolo de uma cristianismo radical e secular, observou a importância do silêncio. Nas suas cartas de prisão, escreveu sobre sua repugnância pela conversa fútil dos prisioneiros. "Todo mundo aqui parece falar indiscriminadamente de seus interesses particulares, quer os outros mostrem interesse, quer não, apenas pelo gosto de ser ouvirem falando. É quase um impulso físico mas, se você consegue reprimir o falatório por algumas horas fica depois satisfeito por não ter se deixado levar. E acrescentou que se sentia embaraçado com a maneira como os homens se aviltavam só para se ouvirem falar. Entretanto, não pareciam preocupados com a forma mais profunda de expressão que teria lugar se eles desabafassem com um amigo de confiança e falassem do que era mais íntimo neles.
O que é muito mais sério é a observação de Bonhoeffer de que a própria igreja se enredou demais no palavreado vazio. A seu ver, ao lutar para se afirmar e se defender, a Igreja fez da autopreservação um fim em si mesmo. A Igreja falava cada vez menos em favor do Reino. Ele nota que a Igreja "perdeu com isso sua chance e dizer palavras de reconciliação para a humanidade e para o mundo em geral". Bonhoeffer previu que isso levaria a Igreja - todas as igrejas - um reino de silêncio, confusão e aparente fragilidade no qual a "linguagem tradicional deve necessariamente tornar-se impotente e permanecer silenciosa". Gostemos ou não, compreendamos ou não, entramos agora num estranho período de desolação e reorganização no qual não somente o cristão isolado, mas as próprias igrejas, permanecerão, em grande parte, silenciosos. Haverá, naturalmente, muita resistência a esse estado de coisas, e muitos clamarão cada vez mais alto, não tanto para proclamar o Reino de Deus, como para tornar sua própria presença conhecida e declarar que eles e suas Igrejas merecem atenção. Bonhoeffer sabiamente viu que a finalidade real desse período de relativo silêncio era um aprofundamento da oração, um retorno às raízes do nosso ser, a fim de que, do silêncio, da oração e da esperança, pudéssemos mais uma vez receber de Deus novas palavras e uma nova maneira de afirmar, não a nossa mensagem, mas a Dele.
O cristianismo hoje irá confinar-se à oração por nossos irmãos e a fazer o bem a eles. A organização, o pensamento e o discurso cristãos devem renascer dessa oração e dessa ação". Acrescente que a partir dessa oração e desse trabalho silenciosos surgirá uma linguagem de fé totalmente nova. Ainda não saímos do cadinho, e qualquer tentativa de apressar as coisas só fará atrasar a purgação e a conversão da Igreja. Não nos cabe profetizar o dia, mas virá o dia em que os homens serão chamados a pronunciar a palavra de Deus com tal força que ela transformará o renovará o mundo. Será uma linguagem nova que atemorizará os homens e, contudo, os dominará pela sua força... uma linguagem que proclama a paz de Deus com os homens e o advento do seu Reino. Até lá a causa cristã permanecerá silenciosa e oculta, mas haverá quem ore, faça o bem e aguarde pela hora de Deus".
do livro Amor e vida